Em "O Patrão Cordial", a Cia. do Latão reafirma filiação a um teatro pedagógico que desperte a imaginação do público
DANIEL SCHENKER - ESPECIAL PARA O ESTADO - O Estado de S.Paulo
RIO - A Companhia do Latão realiza uma apropriação de O Senhor Puntila e Seu Criado Matti, peça do dramaturgo alemão Bertolt Brecht datada de 1940, no espetáculo O Patrão Cordial, que também nasceu de uma articulação com Raízes do Brasil, livro de Sérgio Buarque de Holanda publicado em 1936. Por meio desses elos, o grupo conduzido por Sérgio de Carvalho busca abordar uma cordialidade já distante - apesar de não totalmente ausente - da elite, que hoje assume de forma mais direta suas tomadas de posição.
Apresentada desde agosto de 2012 em espaços variados (escolas de teatro, colégios da rede pública, assentamentos, regiões na periferia e no interior de São Paulo), a montagem faz sua primeira temporada, a partir de quarta-feira, no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio, logo depois de integrar a programação do Festival Cena Brasil Internacional. No segundo semestre, a encenação deverá desembarcar em São Paulo.
Em O Patrão Cordial, Puntila se torna Cornélio e Matti, Vitor. De acordo com o diretor Sérgio de Carvalho, "o primeiro nome tem sonoridade que remete a coronel e o segundo, à crença na esfera do trabalho". A ambientação na Finlândia é substituída pela região do Vale do Paraíba. E a ação é transferida para a década de 1970 (o Brasil de Emílio Garrastazu Médici). Uma época em que havia mais patrões cordiais, ambíguos - como Puntila, mais afetuoso quando embriago e irascível quando sóbrio. O contraste entre a visão de mundo de personagens - alguns pouco vinculados ao plano real, outros comprometidos com uma perspectiva concreta, pragmática - que parecem viver em períodos distintos evoca o universo de Anton Chekhov, autor que Sérgio de Carvalho planeja encenar.
Esse novo espetáculo reúne características centrais da Companhia do Latão, fundada em 1996, como a revisita à figura do homem cordial (presente, anteriormente, em Auto dos Bons Tratos); a verticalização do trabalho sobre a obra de Brecht (que rendeu as montagens de Ensaio sobre o Latão, Santa Joana dos Matadouros e O Círculo de Giz Caucasiano) - ainda que dessa vez canalizada para a produção de uma dramaturgia própria; a filiação a um teatro pedagógico, de natureza didática; e o investimento na imaginação do espectador. Este último elemento pode ser percebido na inserção da música (de Martin Eikmeier) dentro do espetáculo e numa proposta cenográfica (de Cassio Brasil) voltada para o essencial, na qual tablados de madeira são manipulados pelos atores para sugerir ambientes diversos. O Patrão Cordial conta no elenco com dois atores que estão na companhia desde o início: Helena Albergaria e Ney Piacentini.
Desmontando fórmulas de pensamento para abrir novas
O Estado de S.Paulo
Sérgio de Carvalho transita por terreno conhecido em O Patrão Cordial, não só dando continuidade à encenação de obras de Bertolt Brecht como por ambientar a história numa região familiar - o Vale do Paraíba, onde seus avós moraram. Ao mesmo tempo, essa montagem da Companhia do Latão lança desafios, como o de produzir uma dramaturgia a partir de O Senhor Puntila e Seu Criado Matti, de Brecht, propondo distanciamento geográfico e temporal.
A localização da peça no Brasil das últimas décadas suscita comparação com os dias de hoje, marcados pela diminuição de uma elite mascarada, que procurava dominar pela cordialidade. A reflexão é estimulada pelo humor, a julgar pela habilidade de Brecht em se valer da comédia clássica, evidenciada nesse texto que ganhou a cena, em 1966, com direção de Flávio Rangel, tendo Ítalo Rossi e Jardel Filho nos papéis centrais.
Por que decidiu adaptar O Senhor Puntila para o Brasil?
Enxerguei parte da paisagem finlandesa no Vale do Paraíba, uma região ligada a um certo tipo de fazendeiro culto, deslocado, saudoso de uma época áurea. Puntila é um fazendeiro atípico. Seu comportamento é de certa cordialidade, próprio de alguém que deseja criar uma intimidade permanente. Ele luta contra a função da exploração. Mas é uma luta falsa, que não se dá na realidade dele, de homem ligado ao mundo do trabalho. Ele é funcionário do capital.
Você considera essas relações informais de trabalho próprias do Brasil?
Não só do Brasil. Mas dizem respeito à periferia do capitalismo. Em todo caso, o recente escravismo brasileiro ajuda a criar percepção fraca de determinados conceitos, como o de indivíduo, a ponto de um sociólogo como Chico de Oliveira dizer que não existe, ou não havia até pouco tempo, indivíduo como categoria social.
A decisão de transportar a ação para a década de 70 está ligada a uma descrença na permanência da figura do patrão cordial nos dias de hoje?
Acho que o patrão cordial ainda existe. Na verdade, hoje as pessoas falam francamente sobre o motivo econômico. Já não têm tanta vergonha em expor o caráter mercantil. E, ao localizar a ação nos anos 70, fica mais fácil perceber o contexto atual. É uma operação ligada, inclusive, à estratégia brechtiana: recuar um pouco para observar.
Em O Patrão Cordial, a música tem função dramatúrgica?
O fato de Martin (Eikmeier) ensaiar conosco todos os dias torna a música dramatúrgica. Ela narra e muda de função ao longo do espetáculo: cria comentários paralelos, conexões entre aspecto interiorano e mundial. É utilizada na contramão das convenções. Martin não tem medo de sacrificar a beleza da música em favor da verdade da cena.
O Latão já encenou algumas peças de Brecht. O olhar do grupo em relação ao dramaturgo mudou ao longo do tempo?
Fomos entendendo cada vez mais o sentido dialético de Brecht. De início, nós nos debruçamos sobre o uso que Brecht fazia do teatro clássico para estranhar o material naturalista. Depois percebemos que essa abordagem formal era insuficiente. Não se trata de estilo, de técnica, mas de usar diversos procedimentos formais para aprofundar contradições do material.
Quais as trocas que o grupo estabelece em apresentações fora do espaço institucionalizado do teatro, como assentamentos e escolas públicas?
São ocasiões em que aprendemos mais do que oferecemos. Você muda a força do debate após uma apresentação teatral. São experiências que desmontam fórmulas de pensamento para abrir novas. O conceito-chave do Latão não é o de obra, mas o de trabalho.
Acredita no poder do teatro como instrumento de transformação, considerando, até mesmo, os protestos atuais no Brasil?
O poder do teatro é pequeno, mas profundo. As experiências teatrais radicais - no sentido de vivas - são decisivas, formadoras. Nos anos 60, o teatro contaminou o cinema, mudou padrões da TV e dos veículos de massa. Atualmente, é difícil estabelecer elos porque passamos a lidar com determinadas separações - como entre trabalho intelectual e braçal. O teatro, pelo menos o coletivizado, exige conexões. Não é à toa que aqueles que experimentam o teatro percebem que há possibilidades diferentes em relação às formas tradicionais de trabalho no mundo mercantil. O mais radical dos teatros não necessariamente mobiliza alguém a ir para a rua. Isso depende de outros fatores. Mas esse teatro pode se conectar a esses fatores. Hoje há um estado meio mortificado, feito de generalizações difusas. / D.S.
FONTE: O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 24/6/2013, p. C3.
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