Por Eric Nepomuceno
Na América Latina – com a exceção mais óbvia, Cuba – não há governos mais opostos que o da Venezuela e o dos Estados Unidos. O processo encabeçado pelo falecido presidente Hugo Chávez fez do antagonismo às políticas de Washington para a América Latina um de seus pilares. Pelo lado chavista, o histórico das relações entre os dois países é uma espécie de rol de queixas, em sua esmagadora maioria justas, contra as ingerências norte-americanas em toda a região.
Chávez sempre jogou limpo: desde o primeiro instante se declarou abertamente contrário às políticas de Washington para a região. Defendeu ao extremo a união e integração entre os países, e, em especial, os da América Latina. Defendeu a busca da autossuficiência econômica, e teve como resposta de Bush uma frase tão absurda como inolvidável: a Venezuela de Chávez era uma ameaça à democracia na América Latina.
Bush, presidente do país que mais atentou contra a democracia em nossas comarcas, se dava o luxo de determinar quem eram os democratas.
Pouquíssimas vezes nas relações entre um país latino-americano com peso político e os Estados Unidos houve situações tão claramente antagônicas. O auge mais visível talvez tenha sido o que Hugo Chávez, com seu carisma e sua personalidade incomparáveis, fez quando compareceu ao plenário da ONU. Antes de iniciar um de seus discursos contundentes que tinham a política norte-americana para a região como alvo preferencial, ele mencionou o "cheiro de enxofre" que sentia no ar, em relação à passagem pelo mesmo lugar, na sessão anterior, do demônio em pessoa, ou seja, George W. Bush.
Em termos práticos, as coisas foram, de maneira resumida, assim: desde a primeira eleição de Chávez, ainda em tempos de Bill Clinton, quando ficou claro que os rumos da Venezuela mudariam de maneira radical, a tensão se instalou. Com a posse de George W. Bush, em 2001, o caldo entornou de vez.
Convém não esquecer que o frustrado golpe de Estado contra Chávez, em abril de 2002, contou com o apoio direto de Bush. Durante o curto tempo em que o venezuelano esteve afastado do poder – dois dias –, Washington correu para reconhecer como legítimo o fugaz governo que tentou se instalar no país.
Foi a conta: se o discurso anti-Washington de Chávez já era contundente, a partir daquele momento se tornou mais afiado ainda.
Calculava-se – como se calculou uma série de mudanças que não ocorreram – que com Barack Obama as coisas seriam diferentes. E, de novo, nada consistente aconteceu.
No campo estritamente formal das relações diplomáticas, a última vez – até agora – que um ministro de Relações Exteriores da Venezuela e seu par, o secretário de Estado norte-americano, se encontraram foi em 2005. Desde 2010, não há um embaixador dos Estados Unidos em Caracas, nem um embaixador venezuelano em Washington. Embora o comércio de petróleo tenha se mantido – a Venezuela é o maior produtor do mundo, e o mercado dos Estados Unidos seu principal comprador –, as relações políticas e diplomáticas se mantiveram no antagonismo frontal.
Até agora, e esse é apenas um exemplo, Washington não reconheceu a eleição de Nicolás Maduro, apesar do que diz a justiça eleitoral da Venezuela e o que atestam mais de 400 idôneos observadores internacionais. Prefere apoiar o derrotado Henrique Capriles, que diz que a diferença entre ele e o presidente eleito – pouco mais de 260 mil votos – é indício de fraude. Esse mesmo Capriles venceu, em outubro passado, a eleição para no estado de Miranda por apenas 20 mil votos, sem que o chavismo tivesse posto em dúvida as autoridades eleitorais do país.
Com a morte de Hugo Chávez – na verdade, desde um pouco antes, quando ficou claro que seus dias estavam contados – as relações entre Caracas e Washington tornaram a ser tema de análise e discussão intensa. O presidente Maduro lembra que, em novembro do ano passado, Chávez, recém reeleito, pediu a ele, então chanceler designado candidato a sucedê-lo, que procurasse distender as relações com os Estados Unidos.
Envolvido no turbilhão de problemas internos que sacodem a Venezuela, tudo que Nicolás Maduro não precisa é ir mais fundo num confronto com Washington. Por isso mesmo, é fácil entender os movimentos que seu governo faz (ou aceita que sejam feitos) para aproximar dois polos opostos, Caracas e Washington.
Por enquanto, tudo não passa de um delicado balé diplomático: há poucos dias, durante uma reunião da OEA na Guatemala – a mesma que conduziu o brasileiro Paulo Vannuchi à Comissão Interamericana de Direitos Humanos –, o chanceler Elías Jaua, figura de proa do chavismo, manteve um encontro reservado com o secretário de Estado John Kerry. Foram 40 minutos de conversa, algo nada usual em se tratando de autoridades máximas de relações exteriores de dois governos claramente antagônicos. Por exemplo: a conversa de 2005 entre Condoleezza Rice e o chanceler venezuelano Ali Rodríguez durou oito minutos.
A primeira coisa que combinaram – ao menos, a primeira coisa que disseram quando saíram da conversa reservada – é que serão nomeados embaixadores dos dois países. Quando? Logo.
Maduro foi claro: diz que quer um diálogo normal com Washington, e para isso "é preciso haver respeito nas relações de caráter político, de caráter diplomático".
Um detalhe: apesar do mal-estar existente nas relações políticas e diplomáticas entre Washington e Caracas, as relações comerciais andam de vento em popa. Os Estados Unidos continuam sendo os maiores compradores do petróleo venezuelano.
Que ninguém venha dizer que é pelas dificuldades econômicas que seu país enfrenta que Nicolás Maduro se mostra disposto a recompor as relações diplomáticas com o governo que melhor simboliza o polo oposto dos predicados do processo bolivariano.
É mais que isso. É mais importante que isso. E, para a tranquilidade de toda a América Latina, oxalá esses dois governos com duas visões de mundo antagônicas possam se respeitar e, respeitosamente, conviver.
FONTE: Carta Maior
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