Raul Milliet Filho
O “Megafone do Esporte” vem a público manifestar seu apoio ao projeto de lei apresentado pelos vereadores do Rio de Janeiro Paulo Pinheiro, Renato Cinco e Eliomar Coelho, do PSOL, propondo que o Engenhão passe a ser Estádio Olímpico João Saldanha, e convida todos para a audiência pública e debate no plenário da Câmara dos Vereadores – RJ, no dia 27 de maio, às 18 horas.
A campanha “Sai Havelange, entra João Saldanha” foi lançada pelo Núcleo de Estudos e Projetos Esporte e Cidadania (embrião do “Megafone do Esporte”), em 13 de julho de 2012, com apoio do blog do Juca Kfouri. E os seus frutos estão sendo colhidos agora.
João Saldanha, em toda a sua vida, não foi apenas o jornalista esportivo com atuação em rádio, jornal e televisão. Como diretor de futebol e técnico campeão do Botafogo em 1957, foi o maior responsável pela montagem do time que vive até hoje na memória de cariocas e brasileiros, do qual faziam parte Nilton Santos, Didi, Mané Garrincha e Quarentinha. Uma equipe que foi a base do bicampeonato mundial conquistado pelo Brasil em 1958 e 1962. Fato que poucos sabem é que, nessas duas jornadas, o preparador físico da seleção brasileira foi também do Botafogo: Paulo Amaral.
Em 1969, João resgatou a autoestima do futebol brasileiro como técnico e comandante da seleção que viria a ser tricampeã no México. Escalou e definiu as “feras do Saldanha”: Carlos Alberto, Brito, Piazza, Gerson, Jairzinho, Tostão e Pelé. Até ser demitido por não aceitar interferências diretas da ditadura militar, através do então presidente Médici, e por ter denunciado torturas e assassinatos no Brasil a jornais e revistas de todo o mundo.
No link a seguir, uma entrevista de Saldanha em Porto Alegre, 20 dias antes de sua demissão da seleção:
Ao lado de outros grandes jornalistas esportivos, inovou com seu estilo coloquial a cultura e a linguagem da imprensa especializada.
João Saldanha tinha no humor seu principal ponto de apoio. Um humor onde a alegria e o sorriso maroto de João, extensão de sua própria vida, não eram inventados, mas vividos, gostados e praticados. O humor de João pode ser situado na linha do historiador e linguista russo Bakhtin. Um humor que se transmuta em riso como forma de bater no fígado do discurso oficial, impedindo que o sério se imponha com a prepotência de gala dos dominadores.
Uma pequena amostra desse espírito irreverente, durante o jogo Brasil x Venezuela, nas eliminatórias da Copa de 1970, pode ser visto no link:
Em contrapartida, tinha um temperamento explosivo, um pavio curto, o que lhe trouxe muitos problemas, como no episódio da invasão da concentração do Flamengo, para tomar satisfações do técnico Yustrich, que o ofendera em algumas entrevistas. Situações como essas o prejudicaram ao longo da vida, servindo de pretexto para seus adversários.
Ainda jovem, atuou em São Paulo e Paraná defendendo e organizando operários em greve e camponeses ameaçados de expulsão de suas terras.
Quando do planejamento do Aterro do Flamengo, foi o responsável, junto com Raphael de Almeida Magalhães, pela inclusão dos campos de pelada, esquecidos no projeto original. Mesmo sendo adversário político do lacerdismo, representado naquela conjuntura por Raphael, não hesitou em estabelecer essa parceria pontual, que redundou na construção de uma das maiores áreas para a prática esportiva na cidade.
Em 1985, convocado por Marco Maciel, primeiro ministro da Educação da Nova República, a apresentar um projeto de política de esporte para o país, formou uma comissão composta por Juca Kfouri, Fernando Menezes, José Antônio Gerheim, com a assessoria do Núcleo de Estudos e Projetos Esporte e Cidadania.
Logo na primeira reunião, Saldanha, Juca e José Antônio decidem assumir como seu o documento “Uma Política de Estado para o Esporte no Brasil”, formulado pelo Núcleo Esporte e Cidadania, fruto de um longo trabalho de pesquisa e de projetos implantados na periferia do Rio de Janeiro nos anos 70.
As linhas gerais do documento são mais atuais do que nunca: “em um país como o Brasil, o esporte deve ser mais um instrumento na resolução da questão social, articulando-se com a educação, saúde e política alimentar”.
E vai adiante o documento: “uma política de esportes no país deve priorizar investimentos de pequeno e médio porte, mais condizentes com o perfil de uma sociedade cuja maior tarefa é diminuir as distâncias que separam a miséria e a pobreza do fausto arrogante de projetos suntuosos, de um Brasil que antes de pretender transformar-se em potência olímpica, deve almejar garantir o acesso de sua população a padrões mínimos de vida, sem os quais torna-se impossível construir uma política de esportes democrática.”
Não é preciso dizer que Marco Maciel engavetou o projeto. Foi preciso que o Núcleo Esporte e Cidadania articulasse com o Ministério da Previdência para por em prática essas diretrizes, o que só foi possível com a pressão e o apoio aberto de João Saldanha, como pode ser constatado nas crônicas abaixo, de 1985 e 1986.
Daí surgiu o Programa Recriança, que atendeu a mais de 500 mil crianças e adolescentes em todo o país. Uma iniciativa que, realizada pelo Ministério da Previdência em parceria com prefeituras, deixou frutos em dezenas de municípios brasileiros.
João Saldanha e seus parceiros acreditavam que, em uma política de esporte e cidadania, o esporte social – o esporte cidadão, voltado ao atendimento das camadas mais pobres da população, praticado em escolas, clubes e bairros populares – e o esporte de alto rendimento – o que busca desempenho e conquista de medalhas e campeonatos – não são excludentes, ao contrário, se complementam.
Entendiam que o poder público em um país como o Brasil tinha obrigação de investir a maior parte de seus recursos no Esporte Social.
Após a experiência do Programa Recriança, ficou patente que investimentos no esporte social têm uma capacidade de geração de emprego cinco vezes maior (custo per capita) do que no alto rendimento. Nesse caso, os recursos devem ser investidos quase que exclusivamente em custeio: pessoal (professores, estagiários, pedagogos etc.), material esportivo e alimentação.
Todos os levantamentos realizados apontam para uma subutilização das áreas esportivas existentes, que, em sua maioria, demandam, quando muito, pequenas reformas, solucionáveis com investimentos locais insignificantes.
Pois bem, só com o dinheiro gasto no Maracanã, no estádio Mané Garrincha e em Manaus, seria possível atender 1,5 milhões de crianças e jovens, três vezes por semana, em articulação com as escolas, em um programa esportivo, cultural, profissionalizante, oferecendo uma segunda merenda escolar.
E o governador Sérgio Cabral Filho sabe disso muito bem, pois conheceu de perto os resultados positivos do Programa Recriança.
Dar ao Engenhão o nome de João Saldanha não significa apenas firmar uma postura ética em relação a um importante estádio público, mas deixar claro uma oposição frontal a esta política dos megaeventos (Copa e Olimpíadas), que distancia o esporte da educação, elitiza o acesso aos estádios e dificulta a democratização da prática esportiva.
João Saldanha combateria enfaticamente esse estado de coisas, desancando a privatização do Maracanã entregue a interesses contrários àqueles que ele sempre defendeu em vida.
Sérgio Cabral Filho, Eduardo Paes, Eike Batista, Marin e Nuzman não escapariam de suas críticas afiadas e contundentes.
Como é possível entregar de bandeja a interesses poderosos um estádio que custou 1,2 bilhões de reais? Como é possível espalhar pelo Brasil uma manada de elefantes brancos?
O maior desperdício de recursos públicos reside exatamente na definição equivocada de prioridades. E tudo isso teve início quando o governo federal elegeu como ponto central de sua política de esportes a realização dos megaeventos, transformando a cidade e o esporte em mercadorias intercambiáveis, subtraindo o potencial gregário e educativo da prática desportiva.
O Estádio Olímpico João Saldanha é uma bandeira fincada na luta pela ética e democratização do esporte e não se restringe às quatro linhas, a um clube ou a um partido político. É uma homenagem ao papel que a cultura popular representa na construção da autoestima de um povo, de uma nação, ao potencial gregário e educativo do esporte.
Após a conquista da Copa do Mundo do México, Saldanha escreveu uma crônica, “A Vitoria da Arte”, onde dizia:
“antes de mais nada, quero dizer que a vitória extraordinária do Brasil foi a vitória do futebol... fazendo da arte de seus jogadores a sua força maior... é pela vitória da arte, que continua sendo dentre as mais variadas concepções do futebol moderno, a verdadeira razão de se encherem os estádios e a identificação mais sólida e decisiva do futebol do Brasil”.
Pouco tempo antes escrevera outra crônica onde afirmava:
“Minha concepção para Copa do Mundo era de que poderíamos batê-los, aos grandalhões, com arte e habilidade. Jamais na força física. Convoquei Zé Carlos do Cruzeiro, pois já tinha ali no meio Pelé, Tostão, Dirceu Lopes e Rivelino...
Pelé e Tostão demonstraram amplamente ser a dupla certa. Jogando bola no chão desde as eliminatórias até as finais, fizemos cerca de 50 gols e só um de cabeça. Tudo por baixo, como sabe jogar o futebol brasileiro.”
Quando da inauguração da estátua de João Saldanha no Maracanã, em dezembro de 2009, sua irmã Elza Saldanha Milliet disse ao ex-presidente Lula diante de vários jornalistas: “presidente, se o João fosse vivo não gostaria nada de ver toda esta dinheirama gasta aqui no Maracanã. Tenho certeza que iria criticar.”
Vida que segue.
Texto completo das crônicas:
> Um gol da Previdência, de João Saldanha (JB, 29/07/1986)
*Raul Milliet Filho – é botafoguense, mestre em História Política pela UERJ, doutor em História Social pela USP. Como professor, pesquisador e autor prioriza a cultura popular. Gestor de políticas sociais, idealizou e coordenou o Recriança, projeto de democratização esportiva para crianças e jovens.
FONTE: Carta Maior
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