Por Antonio Carlos Mazzeo
"[...] E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino do primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal [...]
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos"
(Caetano Veloso)
Em tempos de barbárie a violência generalizada mostra sua cara, mas essa vem coberta pela neblina, na forma de vulto obscuro em que não vemos além da superfície manifesta, como se topássemos com o fenômeno escancarado sem, no entanto, poder ver sua essência.
Tudo aquilo que se manifesta cotidianamente aparece de imediato, com falsa aparência de realidade, como se fantasiada de algo que é sem ser. Estou falando da contradição entre aparência e essência. O que nos vem como generalização é na verdade uma particularidade-concreta.
A propagada "violência generalizada" tem razão de ser. Não nasceu do éter, ou de uma pretensa maldade inerente aos homens (aqui no sentido de humanidade). Ela possui determinações sociais. De modo que iniciemos a dar forma a esse conceito preconcebido, que retira a hominidade concreta da tal "violência".
Ela começa na violência de uma sociedade que retira os direitos reais das pessoas, ou dizendo de modo preciso, de um segmento da sociedade que já perdeu tudo, dos miseráveis, dos abandonados e desvalidos, dos rebotalhos de uma sociabilidade que suga até o bagaço a vida e a alma das pessoas e depois as joga à margem, ao Deus-dará.
Assim vivem a maior parte dos homens e mulheres da sociedade brasileira, por sua origem mesma, pela história de 400 anos de escravidão e de latifúndio, pelos vários períodos de ditaduras, pela exclusão-inclusora, pela autocracia burguesa, pelo descaso e pela manipulação dos poderosos.
Nas últimas décadas a ofensiva neoliberal contra os trabalhadores foi de grande intensidade, balizadas pela renovada experiência fascistizante inaugurada pela defunda agente do capital financeiro e do imperialismo, Margaret Thatcher. Em um país como o Brasil, de larga tradição de repressão aos movimentos dos trabalhadores - em que presidentes da república, como o nada saudoso Washington Luís , definiam a questão social como "caso de polícia" - essa política caiu como uma luva. Rapidamente a burguesia brasileira incorporou as políticas de desmonte das conquistas dos trabalhadores a seu dicionário prático, contando com a poio do mais eficaz agente da modernização conservadora, o Partido dos Trabalhadores (e seus aliados), transformado em estafeta dos interesses dos monopólios, da agroindústria e do capital financeiro.
Mais do que isso, sob o silêncio conivente do govermo federal, muitos governos estaduais abriram guerra declarada contra os lutadores sociais - sindicalistas de oposição, líderes comunitários, líderes de trabalhadores rurais e lideranças étnicas - jogando suas tropas policiais contra os movimentos reivindicatórios e, principalmente contra os pobres e incluídos-excluídos. Assim está sendo no Rio de Janeiro, com a fúria demente de Cabral contra populações faveladas. Em São Paulo, o governador católico fundamentalistaque apoia entusiasticamente uma das mais violentas polícia do mundo, a PM paulista - que diariamente assassina dezenas de negros e mestiços, todos eles pobres e, como diz o poeta, "mulatos e outros quase brancos. Tratados como pretos". No campo, assassinam líderes de trabalhadores sem terras, matam e tratam índios como lixo. Nas cidades, perseguem os miserávies zumbis vítimas das drogas como se fossem animais raivosos!
Nesse quadro terrível de ascensão fascista - estrategicamente apoiada pela mídia brasileira, sabidamente golpista e aduladora dos poderosos, serviçal e baba-ovo do imperialismo estadunidense - a burguesia abre um novo front na guerra contra os pobres e miseráveis, voltando suas baterias contra os filhos menores do proletariado. O novo front de guerra contra os miseráveis quer institucionalizar o que já faz há anos; é abandeira da redução da idade penal. Não é novidade o massacre sistemático das crianças filhas da pobreza, integrantes do contingente dos sem-futuro, basta que lembremos da chacina de crianças abandonadas e esfomeadas na Candelária, no Rio de janeiro, em 1993 - como diz outro poeta:"Já foi nascendo Com cara de fome. E eu não tinha nem nome Prá lhe dar."
Na contra-mão da civilidade, ou do que resta dela na sociabilidade capitalista, os setores mais reacionários lançam a campanha que visa a legalização do aprisionamento de crianças e adolescentes. Contra tudo que o conhecimento científico demonstra, a burguesia em sua fúria, escancara seus dentes. Recusa o que dizem os mais respeitados pedagogos, psícólogos e sociólogos, de que o processo pedagógico mais eficiente é o do acolhimento e da proteção. Optam pela "pedagogia do fascismo", isto é, integrar os que são integrados e eliminar os incluídos-excluídos. Melhor dizendo: "criança infratora boa é morta". Afinal, matar bandidos infantís é antecipar a "profilaxia social" !
Não faltam boçais truculentos de plantão, os falastrões fascistas da mídia golpista a incentivar, inclusive a adoção da pena de morte, até para os menores infratores. Basta ligar a TV a partir das 17:00h, para assistir programas macabros que tratam a delinquência resultante de uma sociabilidade truculenta que marginaliza e criminaliza a pobreza como questão de "índoles" ou de "falta de deus no caração". Como se o "mal" fosse uma opção e não resultado de complexas condições sócioeconômicas, educacionais e culturais.
No mundo hodierno a mídia tem papel decisivo, enquanto complexo de aparelhamento ideológico e de hegemonia. Não se enganem, eles "fazem cabeças" e corações, instigam a verdadeira violência, quebram todas as necessárias mediações e ponderações analíticas sobre a relação da miséria humana e a violência. Sem temor de sermos minoria, temos que saber que a maioria da população está propensa a apoiar a redução da maioridade penal. Quero ilustrar minha argumentação, com duas cartas de leitores, do "painel do Leitor" da Folha de São Paulo" de 17/04/2013, sobre o massacre do carandiru.
Por razões óbvias, cito apenas as iniciais dos nomes dos emitentes:
Carandiru
1. "Tanto a imprensa como o promotor têm se pronunciado de forma inadequada sobre o tema. No processo ocorre uma eversão. A Promotoria não se desincumbiu de apontar os responsáveis pelo fato, elegendo a polícia como bode expiatório. Quem merece punição é o amotinado, não quem os reprimiu. A função do Ministério Público é a defesa da sociedade ou de facínoras?"
J.F.C (São Paulo, SP)
2. "É justa a indenização a familiares dos presos mortos no Carandiru. Mas que esse dinheiro venha do patrimônio pessoal das autoridades responsáveis pelo massacre e também, no caso das autoridades eleitas, do dinheiro das empresas que financiaram suas campanhas (elas são coautoras). Não tenho nada com isso."
O. C.G. (São Paulo, SP)
A primeira carta citada é explícita, apoia o massacre, entendido como punição necessária, pelo fato dos amotinados serem prisioneiros condenados, ou como define, "fascínoras". Aqui, o Estado é entendido como organismo "vingador" da sociedade, com conotações bíblicas do Velho testamento, do deus vingador.
A segunda carta citada, como podemos ver, é mais comedida, compreende a necessidade de indenizar os parentes da vítimas, mas exige que se desencumba o Estado e a sociedade, porque não tem "nada com isso"
Ambas expressam a posição de um largo segmento ganho pela ideologia da barbárie. Um, do fundamentalismo religioso, que transforma as instituições em instrumentos de vingança contra "pecadores". Outro, exime a sociedade e culpabiliza indivíduos. As duas posições materializam, hoje, um senso comum construído durante e depois da ditadura militar
Nosso desafio é abrir uma contra ofensiva, dentro dos limites que temos, e colocar à discussão em nossos sindicatos e em nossos locais de militância e de trabalho essa questão, dentro de um outro parâmetro. Descriminalizar a pobreza implica, também, em apontar soluções para a criminalidade. Não a fascistizante, que deixa as penitenciárias em condições degradantes, que desagregam ainda mais o punido e que se constitui em escola de crime, uma senzala de desvalidos. Não as casas de acolhimento de menores nos moldes de casas de correções que desfiguram a infância e a adolescência, tornando-os homens lumpen-proletários precocemente degrados.
É desafiante integrar incluídos-excluídos que fazem parte integrante da concepção societal engendrada pelo capitalismo. Isso, como sabemos, será possível apenas em outra sociabilidade. Por ora, devemos procurar salvar esses brasileiros "sem eira nem beira" da sanha fascista. A luta pelos direitos e pela dignidade desses irmãos é o mínimo...e não podemos mais perder tempo!
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