A historiadora Anita Leocadia Prestes critica abordagem de artigos do dossiê “Guerrilheiros”, publicado na RHBN de março
Por Anita Leocadia Prestes
A Revista de História publicou, em março de 2013, um dossiê sobre
os militantes da “esquerda armada” que, de diferentes formas,
defenderam o recurso às armas na luta contra a ditadura instaurada no
Brasil a partir do golpe civil-militar de abril de 1964. Na realidade,
estamos diante da desqualificação dos jovens que lutaram contra a
ditadura pela RHBN.
O caráter tendencioso desse dossiê já se evidencia na apresentação da capa
da revista através da citação de uma frase infeliz de Carlos Marighella
-“toda revolução tem sua linha burra”- e da afirmação de que tanto os
golpistas de 64 quanto os militantes de esquerda, que lutaram contra a
ditadura, com “sonhos e planos radicalmente distintos”, não teriam
ideais democráticos. Dessa maneira, ambos os lados em confronto a partir
do golpe são postos no mesmo pé de igualdade, o que contribui para a
difusão de uma imagem negativa daqueles brasileiros que, de uma forma ou
de outra, resistiram e lutaram contra o regime ditatorial militar que
reprimiu com inusitada violência toda e qualquer manifestação contrária
aos desígnios dos donos do poder.
No referido dossiê, com a exceção talvez do artigo assinado por Edson Teles,
não há uma análise substantiva do contexto histórico, - econômico,
social e político - da época, nem da situação internacional então
existente. Não é apresentado um exame da ofensiva então em curso de
parte das potências imperialistas – em primeiro lugar dos EUA – contra
os movimentos populares e revolucionários no continente
latino-americano, a partir da vitória da Revolução Cubana em 1959. Falta
uma apreciação das condições sócio-políticas do Brasil naqueles “anos
de chumbo”, que poderia revelar a inviabilidade do recurso às armas na
luta contra a ditadura no referido período, uma vez que inexistiam no
país forças sociais e políticas organizadas e conscientes, preparadas
não só para apoiar, mas também participar de um processo de rebelião
armada com vistas à derrubada da ditadura.
Na ausência de tais condições, o recurso à luta armada – uma forma de
luta possível e justificável quando os donos de poder recorrem à
repressão contra as forças progressistas e revolucionárias – se
transformou numa aventura perigosa, independentemente das intenções dos
seus adeptos, pois contribuiu para o retrocesso e o esfacelamento do
movimento popular. Com o golpe de 1964, a derrota dos setores
democráticos e progressistas no Brasil foi de tal ordem, que se tornara
necessário recuar para reorganizar o movimento popular e conduzi-lo à
luta contra a ditadura.
O PCB (Partido Comunista Brasileiro) foi quem melhor compreendeu a
necessidade de adotar uma política de mobilização das amplas massas do
povo brasileiro para acumular forças na luta pela derrota da ditadura,
aproveitando todas as possibilidades legais existentes, inclusive a
participação nas eleições. Luiz Carlos Prestes, o secretário-geral do
PCB, liderou o combate contra a aventura “esquerdista”, ao mesmo tempo
em que empreendia a luta interna contra as tendências reformistas
presentes na direção desse partido, conforme mostro, com base em
documentos, em meu último livro - Luiz Carlos Prestes: o combate por um partido revolucionário (1958-1990).
Prestes não teve êxito no esforço empreendido para transformar o PCB em
um partido revolucionário, capacitado a conduzir a luta dos
trabalhadores brasileiros pelo socialismo, o que o levou a romper com
sua direção em 1980. Nessa ocasião, divulgou um documento intitulado Carta aos comunistas,
em que fazia séria autocrítica dos erros cometidos pelo partido,
reconhecendo que as tendências reformistas presentes no PCB haviam
contribuído para que muitos jovens ingressassem na aventura da luta
armada, sem levar em conta sua inviabilidade nas condições então
existentes no país. Tais tendências reformistas contribuíram também para
que o processo de transição do regime ditatorial para a democracia
fosse limitado, uma vez que encabeçado por lideranças da burguesia
liberal, como Ulisses Guimarães e Tancredo Neves. Circunstâncias estas
que marcaram profundamente os resultados alcançados: anistia para os
torturadores; eleições indiretas para a presidência em 1985; aprovação,
em 1988, de um texto constitucional, em que, segundo o seu artigo 142,
as Forças Armadas estão acima dos três poderes da República,
constituindo um “poder militar”, na precisa definição de Prestes.
A desqualificação dos revolucionários
O caráter tendencioso do dossiê é confirmado pelo título que lhe foi
atribuído – “Ideais de chumbo”, uma aposta na desqualificação daqueles
jovens, homens e mulheres, que se levantaram contra a ditadura e, em
muitos casos, foram barbaramente torturados e assassinados, morrendo
pelos ideais, que não eram “de chumbo”, mas de democracia e justiça
social em nossa terra.
Tal desqualificação dos revolucionários é particularmente visível no artigo de Apolo Heringer Lisboa, cujo título – “Cavaleiros sem esperança”
– expressa com clareza a intenção do autor de denegrir a imagem de Luiz
Carlos Prestes, proclamado Cavaleiro da Esperança por amplos setores da
opinião pública brasileira, desde o final dos anos 1920. Ao mesmo
tempo, evidencia-se o intuito de denegrir a imagem de todos aqueles que,
de uma forma ou de outra, denunciaram a repressão do regime implantado
com o golpe de 1964 e se rebelaram contra a ditadura.
Estamos aqui diante de um texto repleto de tolices e inverdades. Seu
autor afirma, por exemplo, que o tenentismo “denunciava os métodos
servis nas relações de trabalho, herdados da escravidão”, tese que não
corresponde nem ao ideário nem à prática desse movimento. Assevera que
Prestes pretendera, em 1935, “criar uma República Comunista” no Brasil,
alegação absurda, desmentida pela consulta às fontes documentais da
época. Declara que o PCB teria conquistado a legalidade no segundo
governo Vargas, durando até 1964, o que não corresponde à realidade,
pois, cassado seu registro em 1947, o partido não conseguiu ser
legalizado sequer no Governo João Goulart. Outras inverdades poderiam
ser apontadas no referido artigo, todas revelando o intuito deplorável e
retrógrado de desmerecer e atacar as esquerdas no Brasil e na arena
mundial.
Da mesma maneira, temos a repetição de velhas calúnias, segundo as
quais “Prestes e o PCB subordinavam-se às decisões teóricas e práticas
do comitê central do Partido Comunista da União Soviética”, e os ataques
à União Soviética, ignorando e negando as importantes conquistas
econômicas e sociais alcançadas na primeira experiência de construção do
socialismo, não obstante os problemas e os erros que tiveram lugar
nesse difícil processo de construção de uma nova sociedade, livre da
exploração do homem pelo homem.
O autor desse artigo, de acordo com o espírito do referido dossiê,
transmite aos leitores da RHBN a mensagem derrotista de quem capitulou
diante das injustiças presentes na sociedade capitalista. Um discurso de
desmobilização é veiculado, ao afirmar que “hoje predomina entre os
remanescentes dessa geração guerrilheira a idéia fatalista de que
nenhuma alternativa era possível”. Dessa maneira, procura-se
convencer os jovens de hoje de que os militantes da “esquerda armada”,
por terem sido derrotados na luta contra a ditadura, deveriam “enrolar
bandeira” definitivamente, desistindo de qualquer questionamento da
ordem vigente. É ignorado um grande ensinamento histórico, lembrado,
ainda em 1887, pelo destacado pensador e revolucionário inglês William
Morris: “(...) sem as derrotas do passado, não teríamos jamais a menor
esperança numa vitória final”.
Não podemos considerar casual que, do mesmo n° 90 da RHBN, conste uma longa entrevista com o historiador francês Jean-Freançois Sirinelli,
sintomaticamente intitulada “Sem mocinhos nem bandidos”. O entrevistado
declara que o seu trabalho “é fazer uma restituição de complexidades”
e, segundo ele, “a militância é o contrário: há o bom e o mau”, ou seja,
o militante revolucionário não pode ser um bom historiador. Segundo
Sirinelli, “quando você tem convicções fortes (...) você tem uma visão
do mundo maniqueísta, moldada de acordo com elas”. Tal caricatura da
atividade revolucionária, reduzida a um simples maniqueísmo, é difundida
com freqüência pelos “intelectuais orgânicos” (segundo Antônio Gramsci)
a serviço dos setores dominantes, pois contribui para a desqualificação
de todos aqueles que participaram ou participam da luta por
transformações profundas na sociedade capitalista.
Segundo Sirinelli, o marxismo seria inaceitável para o historiador,
porque “explica que há um sentido na história: a luta de classes”. O
entrevistado da RHBN não aceita a explicação histórica baseada nos
conflitos de classe presentes na sociedade capitalista, não concorda com
a concepção de que os fenômenos sociais possam ser examinados à luz do
embate entre dominados e dominantes. Ao rejeitar tais explicações, adota
uma postura aparentemente objetiva e imparcial, mas que, na realidade
contribui para justificar “teoricamente” as concepções presentes no
dossiê “Ideais de chumbo”, ou seja, a desqualificação dos militantes que
lutaram e morreram por ideais que não eram “de chumbo”, mas de
democracia e justiça social.
Anita Leocadia Prestes é doutora em História Social
pela UFF, professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada
da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes.
Saiba mais
- PRESTES, Anita Leocadia. Luiz Carlos Prestes: o combate por um partido revolucionário (1958-1990). São Paulo, Ed. Expressão Popular, 2012.
- PRESTES, Luiz Carlos. Carta aos comunistas. São Paulo, Ed. Alfa-Omega, 1980.
- PRESTES, Luiz Carlos, “Um ‘poder’ acima dos outros”, Tribuna de Imprensa, Rio de Janeiro, 28/9/1988, www.ilcp.org.br (Documentos).
- TOLEDO, Caio Navarro de (org.). 1964: visões críticas do golpe; democracia e reformas no populismo. Campinas, SP, Ed. da UNICAMP, 1997.
FONTE: Revista de História
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