Socialista de corpo, alma e DNA
Das janelas da prisão da Barnimstrasse, na capital alemã, funcionários
acenavam e se despediam da menina: Auf Wiedersehen, Anita! Era 21 de janeiro de
1938 quando o bebê de 78 centímetros e 11,9 kg, atestados em documento médico
fornecido pela polícia de Adolf Hitler, partiu para longe dali. Sem a mãe, mas
com uma vida inteira pela frente. Uma vida que já produziu conhecimento de toda
sorte a partir da dedicação à luta política e da formação como historiadora. Uma
vida que já viveu 76 anos e continua em pleno vigor. Anita Leocádia é
socialista, comunista, revolucionária. E é pesquisadora. Da união da comunista
alemã Olga Benário e do político militar brasileiro Luiz Carlos Prestes surgiu
Anita, que aceitou receber O POVO para uns tantos dedos de boa prosa.
O POVO - Se não fosse sua própria história e essa relação
tão próxima construída com seu pai, Luís Carlos Prestes e a luta dele
causariam-lhe o mesmo encantamento enquanto pesquisadora?
Anita
Leocádia - É difícil dizer na base do “se”, mas é um tema bastante
interessante. É um objeto de interesse pros jovens brasileiros: conhecer melhor
a vida de Luiz Carlos Prestes, que foi indiscutivelmente uma liderança muito
importante durante o século XX. Não é uma questão que venha a mim como filha.
Interessa aos revolucionários, ao povo brasileiro.
O POVO - A senhora costuma repetir uma frase de
Prestes: “Vai ser a partir das lutas populares que surgirão novas lideranças”.
Durante oito anos, o Brasil viu surgir um líder com esse perfil. Que avaliação a
senhora faz dos possíveis avanços ou retrocessos alcançados pelo País tendo à
frente o ex-operário Lula?
Anita - Quando o Lula surgiu, indiscutivelmente – e o
Prestes, meu pai, considerava isso também – foi fruto de uma situação econômica,
social e política difícil do Brasil naquela época, quando há o despertar de um
movimento operário, principalmente naquela zona do ABC (Paulista). O Lula é uma
liderança bastante autêntica desse movimento. Mas essa trajetória passou por
várias fases. Esse é que é o problema. Inicialmente, acho que ele era realmente
comprometido com os interesses dos trabalhadores. É muito inteligente, sem
dúvida, talentoso até, com uma capacidade de liderança muito grande e muito
carisma. Isso é indiscutível. Por outro lado, com conhecimentos muito precários.
E foi cercado, naquela criação do PT (Partido dos Trabalhadores), por um grupo
de intelectuais que exerceram uma grande influência sobre ele, que foi
influenciado pela ideologia burguesa. Tornou-se cada vez mais uma liderança
empolgada com o poder. Foi candidato à presidente da República em três eleições
e perdeu nas três. Na quarta, percebeu a própria desorganização popular
existente no Brasil. Qual foi o jeito de ele se eleger? Fazer um acordo com o
grande capital internacionalizado, o imperialismo.
O POVO - A senhora dedica quase toda sua produção à vida do
seu pai e à história do PCB (Partido Comunista Brasileiro). E, segundo sua
avaliação, essa pesquisa já estaria praticamente esgotada. Não haveria ainda uma
dimensão humana a ser perseguida em relação à vida de Prestes?
Anita
- Como historiadora, venho desenvolvendo pesquisas há 30 anos.
Primeiro, sobre a Coluna Prestes e o tenentismo. Tenho inclusive livros que não
tratam diretamente da figura do Prestes. O centro das minhas pesquisas são a
vida política de Luiz Carlos Prestes e a história do PCB. Até porque,
principalmente a partir de 1930, é impossível separar a vida do Prestes do PCB.
Ele foi uma figura muito importante no partido, de onde foi secretário-geral por
quase 40 anos. Por outro lado, quando se pesquisa a história do PCB, é
impossível também ignorar a atuação de Prestes. São assuntos completamente
entrelaçados. Trabalho com isso: entender e explicar o que acontecia no Brasil
nesse período. Faço parte da corrente que entende o trabalho do historiador como
o que segue a ideia de que o nosso mundo é global. A história não pode ser vista
como algo que segue de forma compartimentada. Esse livro (Luiz Carlos Prestes -
o combate por um partido revolucionário [1958-1990], lançado em Fortaleza no dia
22/3) é o último de uma série que termina efetivamente com o falecimento do meu
pai. Não quer dizer que essa temática esteja esgotada. O mesmo historiador,
trabalhando com o mesmo material, pode fazer interpretações diferentes.
O POVO - A senhora pensa em fechar o processo numa
biografia?
Anita - Meu projeto, aprovado pelo CNPq (Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnologia), de onde sou pesquisadora, visa
justamente escrever a biografia política de Prestes. Estou trabalhando nisso.
Iniciei esse ano. No máximo em três anos devo estar terminando uma biografia
política. Acho que é importante deixar esse legado para as novas
gerações.
O POVO - O quanto desse trabalho, tanto da pesquisa
efetivamente já realizada quanto desta a ser complementada com a proposta da
biografia, alcança também a dimensão da história humana e política da sua
mãe?
Anita - Alcança num determinado período, porque a vida
do meu pai foi muito mais longa e teve uma participação política muito maior.
Ela foi assassinada com apenas 34 anos. A atuação política dela deu-se na
Alemanha quando era muito jovem, num período extremamente tumultuado da vida
política do País, de grande avanço revolucionário. E depois, na União Soviética
e Europa. Ela foi uma militante ligada à Internacional Comunista. No Brasil, a
tarefa que ela cumpriu durou só um ano. Era mais técnica. Mas o técnico não está
desligado da política. Era a tarefa de cuidar da segurança do Prestes. Ela não
conhecia o Brasil. Estava aprendendo português apenas, quando foi presa. Cumpria
uma tarefa de cuidar da segurança do Prestes, de servir de estafeta (espécie de
mensageira).
O POVO - Professora, uma foto publicada em 2012 na capa
Revista de História da Biblioteca Nacional (RHBN) foi criticada pela senhora por
divulgar Prestes em trajes de banho, numa praia aqui de Fortaleza, e “por
banalizar a imagem dele”. A reportagem baseava-se numa documentação farta cedida
pela viúva, Maria Prestes, ao Arquivo Nacional. Que imagem o Brasil e o Mundo
fazem de Luís Carlos Prestes?
Anita - Ele é muito pouco conhecido e a imagem é deformada.
Há uma intenção dos setores dominantes de esquecer o Prestes. Quando isso não é
possível, caluniá-lo ou banalizar sua imagem. Nos últimos anos, isso está muito
claro. E, lamentavelmente, conta com a colaboração de uma parte da família – a
dona Maria, viúva dele. O Prestes tem tantos assuntos interessantes pra
divulgar... Uma revista de História da Biblioteca Nacional, dirigida
principalmente ao público das escolas, dos professores da rede pública, em vez
de divulgar aspectos interessantes da vida de Luiz Carlos Prestes, publica, na
capa (enfática), uma foto dele de calção de banho. Aí tem vários problemas: ele
era uma pessoa antiga, nasceu no século XIX; um homem que não gostava de dar a
público a sua vida privada – acho que isso deve ser respeitado. Ele ficaria
indignado de colocarem na capa de uma revista uma foto dele de calção de banho.
Rigorosamente, não tem nada demais. Quando ele ia à praia, botava calção de
banho. Mas isso era um gesto da vida privada. E ele distinguia muito a vida
privada da vida pública. O Prestes não era artista, não era uma estrela de
cinema, nada disso. Ele era um homem público que prezava sua intimidade. Acho
que é um desrespeito à memória dele. Em segundo lugar: para o povo brasileiro,
para os alunos das escolas, existem outros aspectos muito mais interessantes da
vida de Prestes para serem propagandeados. O objetivo do Instituto Luiz Carlos
Prestes, conforme está declarado inclusive na página (www.ilcp.org.br), é
preservar a memória de Prestes e Olga. Estendemos isso à minha avó, mãe dele, Leocádia [Felizardo Prestes], que teve um papel importante na vida dele e até em salvar minha
vida.
O POVO - A senhora se refere à própria pressão internacional
que ela começou e que conseguiu resgatar a senhora da
prisão?
Anita - Isso. Foi uma campanha muito grande, no
mundo inteiro, pela libertação do Prestes, dos presos políticos no Brasil, da
minha mãe e minha. Foi muito importante. Inclusive, atualmente eu andei
pesquisando isso e tô tentando lançar um livro a respeito dessa campanha.
O POVO - Ao revisitar a obra de seu pai, há algo que
sempre fascina a senhora e que retroalimenta esse desejo de estar próxima dessa
literatura?
Anita - O mais importante no legado dele é a preocupação
permanente de encontrar os meios e as formas de encaminhar a luta revolucionária
no Brasil. A vida dele foi muito pautada, a partir do final da Coluna Prestes,
pra esse objetivo. Durante a Coluna, que percorreu, por dois anos e três meses,
25 mil km, ele e alguns dos outros comandantes ficaram profundamente chocados
com a miséria pelo interior do Brasil. Prestes não tinha nenhuma noção de
marxismo, de comunismo. Por isso também propõe que a Coluna encerre suas
atividades e parta pra Bolívia. Ele começa a estudar e se aproxima dos
comunistas. Em 1928, se desloca para Buenos Aires, onde começa a estudar o
marxismo. Buenos Aires era um centro onde circulavam dirigentes comunistas de
toda a América Latina. Começa a ter contatos e é aí que vai se aproximar do
marxismo e do Partido Comunista, nesse fim dos anos 20.
O POVO - Esse período a que a senhora se refere começa por
volta de 1928. No livro “Olga”, do escritor Fernando Morais, ele relata que, em
abril daquele ano, Olga já era comunista militante e invadira um tribunal para
resgatar seu namorado (prisão de Moabit, em Berlim), o professor comunista Otto
Braun, que seria julgado...
Anita - Ela liderou um grupo de
jovens comunistas na Alemanha pra libertar o Otto Braun. Foi uma ação
espetacular. Otto e todos conseguiram escapar, mas a cabeça dela ficou a prêmio.
O POVO - A senhora teve um contato pequeníssimo com a
Olga. Apenas 14 meses de convívio...
Anita - Saí de lá (de Barnimstrasse) com um ano e dois
meses. Não tenho a menor lembrança dela.
O POVO - A senhora sorri quando fala dela. Como enxerga Olga
Benário Prestes?
Anita - Fui criada numa família comunista.
Pela minha vó paterna e minha tia Lígia – a irmã mais moça do meu pai. Desde bem
pequena, elas nunca esconderam a realidade. Minhas primeiras lembranças são do
México, para onde fui com dois anos e ficamos exiladas. Na nossa casa sempre
tinha a foto dos dois. Eu sabia quem eles eram, que estavam presos e que eram
revolucionários. Numa linguagem acessível à criança de 3, 4, 5 anos. Cresci
nesse ambiente. E também cercada de muito carinho e muita solidariedade. Não só
da família, como dos companheiros, dos amigos no México, depois já no Brasil, e
sempre conheci a história dela. Tinha e, evidentemente, tenho muita admiração
por ela.
O POVO - A senhora sempre se refere ao Prestes como “a
expressão máxima da luta revolucionária pelo socialismo e o comunismo”. Quando
ele faleceu, a senhora tinha 53 anos. Para além do Prestes socialista,
comunista, o que mais ele e a convivência entre vocês representam?
Anita - Ele era um pai muito especial. Embora na infância eu
não tenha convivido muito com ele – foram só dois anos, de (19)45 a (19)47,
quando o partido estava na legalidade, ele era senador e morávamos juntos. Me
levava para tudo quanto era comício, ato público. Era um pai bastante carinhoso.
Até me mimava demais. Fazia todas as (minhas) vontades (risos). Aí nos
separamos, mas sempre mantínhamos correspondência. Tanto aqui no Brasil como
depois, em Moscou, era mantida uma correspondência, com dificuldade. Voltei pro
Brasil no fim de 1957. Logo depois, a prisão dele e de todos os dirigentes
comunistas foi revogada. Passamos a morar juntos de novo. Eu já com 21 anos.
Passamos a ter um convívio muito estreito, inclusive do ponto de vista político.
Ele era cativante. Gostava muito de conversar e tinha interesses variados.
Conversávamos muito sobre política, sobre o PCB, onde logo ingressei também.
Nesses últimos 32 anos da vida dele, de 1958 até a morte (7/3/1990), mesmo
quando ele estava clandestino, nos correspondíamos.
O POVO - No Brasil, homens como o general Brilhante Ustra,
ex-chefe do Doi-Codi, vêm sendo julgados; torturadores, apontados e atestados de
óbito, sendo modificados, como o do jornalista Vladimir Herzog. O País
avançou?
Anita - Houve avanços muito pequenos e limitados.
Inclusive se a gente compara com nossos vizinhos, como a Argentina. Essa entrega
de um novo atestado de óbito à família de Vladimir Herzog, reconhecendo que ele
morreu durante a tortura é um avanço importante. A própria Comissão (Nacional)
da Verdade é um avanço. A deputada (federal) Luiza Erundina (PSB-SP) tinha feito
uma declaração logo que saiu a Comissão da Verdade, dizendo que era uma
“comissão pra inglês ver”. Acho que é bastante isso. Mas a própria dinâmica do
trabalho da Comissão tem revelado avanços. E a movimentação em alguns setores,
as comissões que têm aparecido, os familiares que se movimentam, tudo isso tem
contribuído para que alguns pequenos avanços tenham havido, como esse julgamento
aí do Ustra. Mas realmente, é muito pouco. Os torturadores continuam soltos e
com cargos importantes.
FONTE: O Povo
Parabéns pela entrevista, a ela e aos entrevistadores! Anita Prestes é meu exemplo como historiadora, e sua obra é uma parceira de diálogo com que devo me deparar sempre e inevitavelmente em meu projeto pessoal de escrever ou lidar com a história do PCB; não só meu, claro, mas de todo historiador honesto e comprometido com a verdade fatual.
ResponderExcluirSobre o núcleo da entrevista e as opiniões da Anita, nada mais a dizer. Só gostaria de deixar minha admiração por sua opinião sobre a Comissão da Verdade, em que ratifica a afirmação da Erundina sobre o relativo vácuo da Comissão, mas que reafirma sua importância, já que é melhor ter pouco do que não ter nada. E, creio, isso tem muito a ver com o mote do trabalho da Anita, que é deixar memória, história e lições para os jovens, para que eles saibam quem foram nossos comunistas, quem foram nossos heróis, livrá-los da tirania do esquecimento.
Vejam, com os trabalhos da Comissão, os jovens estão sabendo que houve a ditadura, que houve tortura, abusos e repressão, e sem a Comissão, se instauraria o silêncio! Ontem mesmo vi no Jornal Nacional a notícia da exumação do corpo de João Goulart, e quando um jovem inteligente se interessaria em pesquisar sobre "Quem era esse cara" se não visse a notícia??? "Puxa, pra exumarem o cara, deve ter sido alguém muito importante!!!" E isso é de extrema importância principalmente hoje, quando vemos o renascimento de uma extrema-direita ferrenha e acéfala a promover comemorações elogiosas do golpe por meio de bizarrices como o Clube Militar e "refundações" da Arena...
É ressaltando minha admiração pelo trabalho da Anita e do ILCP, e pelo grande projeto de educar a juventude sobre nosso passado e nossas personalidades, que deixo aqui minha saudação e meus votos de boa sorte e bom trabalho!