"Engels nunca se cansou de repetir que, junto de Marx, não passava de um 'segundo violino'. Auto-caracterização modesta, que foi posteriormente utilizada não só para amesquinhar a grandeza da sua contribuição à obra marxiana como, também, para reduzir o significado da sua própria produção".
Neste texto, José Paulo Netto comenta a trajetória de Friedrich Engels, situando sua importância para muito além do papel de coadjuvante de seu amigo Karl Marx.
Engels: bem mais que um segundo violino
Por José Paulo Netto*
Após a morte de K. Marx (1818-1883), F. Engels, dois anos mais novo que seu amigo e camarada, tornou-se a referência maior do movimento socialista revolucionário. Pelos doze anos seguintes (Engels faleceu em 1895), a ele recorreram teóricos e publicistas do movimento para clarificar questões de natureza teórica, dele se socorreram lideranças políticas para esclarecer dúvidas estratégicas e/ou pontuais – e o reconhecimento universal da relevância de seu protagonismo revolucionário foi atestado pela sua recepção triunfal no “Congresso Operário Internacional” (Zurique, agosto de 1893).
Naqueles doze anos, fez-se incansável a atividade de Engels na divulgação do pensamento de Marx. Graças a ele, vieram à luz os Livros II (1885) e III (1894) d´O capital – no caso deste último, seu trabalho não foi apenas editorial, mas pode ser considerado como o de um coautor, dado o caráter fragmentário dos manuscritos marxianos – e se republicaram importantes textos de Marx. E nos mesmos doze anos, em que também escreveu ensaios seminais, Engels nunca se cansou de repetir que, junto de Marx, não passava de um “segundo violino”. Auto-caracterização modesta, que foi posteriormente utilizada não só para amesquinhar a grandeza da sua contribuição à obra marxiana como, também, para reduzir o significado da sua própria produção.
Com efeito, Engels não só se vinculou ao pensamento comunista antes que Marx o fizesse, como foi ele quem descortinou para o futuro camarada o domínio da crítica da economia política (com o ensaio, que Marx qualificou como “genial”, Esboço de uma crítica da economia política, de 1844). E no momento mesmo em que Marx ainda tateava na descoberta da figura histórica do proletariado, Engels dava a público o notável estudo sobre A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845). Por outra parte, cabe-lhe a co-autoria d’A ideologia alemã (1845-1846) e do Manifesto do partido comunista (1847-1848). Ademais, e sobretudo, não se pode esquecer que inúmeros problemas teóricos, surgidos no processo de elaboração d´O capital, foram equacionados mediante o contínuo diálogo de Marx com ele. Enfim, algo expressivo da produção jornalística de Marx, especialmente nos anos 1850, deveu-se à lavra de Engels. Vale dizer: a auto-caraterização como “segundo violino” não é só modesta – é unilateral e, pois, incorreta, já que obstaculiza a apreciação de Engels como um pensador revolucionário que possuía luz própria, e intensa.
Uma oportunidade para a justa avaliação da estatura teórica de Engels se oferece quando se considera A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Como todo livro, este, redigido por Engels em março/maio de 1884 e publica do em outubro do mesmo ano, em Zurique, tem a sua própria história. Em manuscritos nos quais Marx, entre 1879-1882, registrou leituras de vários estudos antropológicos, Engels encontrou páginas (provavelmente de fins de 1880 ou início de 1881) em que o companheiro fazia um detalhado resumo crítico de Ancient society (1877), livro do etnógrafo norte-americano L. H. Morgan (1818-1881). Nele, Morgan, que pesquisara as tribos iroquesas do norte do estado de Nova Iorque, esboça a evolução da sociedade humana do estágio primitivo à civilização. Marx, mesmo discordando de muitas passagens da obra, julgou-a extremamente importante porque, conforme Engels, “na América, Morgan descobriu de novo, e à sua maneira, a concepção materialista da história – formulada por Marx 40 anos antes – e, baseado nela, chegou [...] aos mesmos resultados de Marx”. Ou seja: o trabalho de Morgan oferecia elementos (basicamente empíricos) para demonstrar a validez universal do materialismo histórico. Ainda segundo Engels, Marx pretendia expor em livro “os resultados das investigações de Morgan para esclarecer todo o seu alcance em relação com as conclusões” da sua (de Marx, mas também do próprio Engels) análise materialista da história. Como Marx não realizou seu projeto, Engels tomou a peito a tarefa: redigir A origem da família... foi, para ele, “de certo modo, a execução de um testamento” – e, novamente aqui, a modéstia do “segundo violino”: “Meu trabalho só debilmente pode substituir aquele que o meu falecido amigo não chegou a escrever”.
Não se pode avaliar uma obra que Marx nunca escreveu e, obviamente, é impossível comparar o livro de Engels (que recorreu expressamente aos apontamentos do amigo e re-examinou o trabalho de Morgan) ao que Marx teria escrito. Mas o que se pode afirmar, com inteira segurança, é que o texto de Engels, ademais de constituir componente básico da concepção materialista histórica do que Florestan Fernandes designou como “o curso histórico das civilizações”, apresenta-se como original e fundante no interior da tradição marxista. Para redigi-lo, Engels recorreu a muito mais que às notas de Marx e ao trabalho de Morgan: percorreu, analisando e criticando, milhares de páginas de especialistas contemporâneos e se valeu, em especial, dos seus indiscutivelmente extraordinários e profundos conhecimentos históricos.
Pela amplitude da documentação que consultou, pode-se constatar que os problemas que Engels tratou n’ A origem da família... estavam na pauta dos debates da nascente Antropologia. Mas a obra também enfrenta criticamente produções de importantes figuras da Segunda Internacional – como o livro A mulher e o socialismo (1879), de A. Bebel (1840-1913), e a série de artigos “A origem do casamento e da família” (1882-1883), de K. Kautsky (1854-1938). Na verdade, A origem da família... é tanto uma polêmica com posições teóricas alinhadas com as ideologias liberais e conservadoras quanto com formulações equivocadas do pensamento social-democrata.
Não cabe aqui um “resumo” do livro. Para dar uma ideia da sua relevância, basta observar que, nele, Engels funda uma nova visão da historicidade da família, repensando inteiramente a posição da mulher (numa análise que, para muitos, favorece teses do feminismo do século XX), estabelece uma cuidadosa faseologia da evolução sócio-cultural da humanidade, da barbárie à civilização, e sistematiza a constituição do Estado, conectando estes movimentos com o estatuto (radicalmente historicizado) da propriedade. Em suma, oferece ao leitor um sintético, mas rico e rigoroso, quadro global do desenvolvimento das formas societárias criadas pelo homem.
É evidente que Engels trabalhou com os dados científicos do seu tempo – alguns posteriormente superados pelos avanços das pesquisas antropológicas. Várias de suas hipóteses, por isto mesmo, ficaram comprometidas. Mas a arquitetura essencial da sua obra permanece exemplar, paradigmática – própria de um pensador que realmente tinha luz própria, bem mais que um “segundo violino”.
* Texto publicado originalmente em Imprensa Popular número 6
FONTE: Editora Expressão Popular
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