Seminário realizado pelo Centro
Acadêmico Manuel Maurício de Albuquerque (C.A.M.M.A) – IFCS/UFRJ
Intervenção
no debate (15/5/1997)
Por
Anita Prestes
Penso que a História pode explicar as sociedades humanas
seja do passado seja do presente. A História, enquanto disciplina, não deve ser
confundida nem com memória nem com relato, crônica ou depoimento. A meu ver, o
historiador tem o dever de não abdicar do seu papel de interpretar os documentos
– sejam eles de que tipo forem – e construir a sua explicação dos fenômenos
pesquisados.
Pode-se questionar: explicar como? Penso
que de forma racional. Sou
partidária das correntes racionalistas, ou melhor, do “paradigma iluminista”,
adotando o conceito de “paradigmas rivais”, proposto por Ciro Flamarion Cardoso
na Introdução do livro Domínios da
História [1], recentemente publicado.
Defendo uma postura filosófica contrária
ao agnosticismo, tão em moda
no âmbito do paradigma chamado de “pós-moderno”. Reconheço, portanto, a
possibilidade de conhecer o mundo exterior, em sucessivas aproximações, e, por
tal razão, explicá-lo de maneira racional.
Sem negar as novas possibilidades
abertas pelo estudo das representações,
proposto pela Nova História Cultural, considero necessário estar alerta quanto
ao risco de cair-se na “tirania do cultural”, conforme é reconhecido por
Ronaldo Vainfas. [2] Ou seja, risco de, ao tentar-se escapar do “primado quase
tirânico do social”, segundo R. Chartier [3], incorrer-se numa absolutização de
sinal contrário. Preocupa-me sobremaneira a produção historiográfica em que são
absolutizados sejam as representações sejam outros aspectos culturais dos
fenômenos estudados, deixando-se de lado os demais aspectos tão ou mais importantes.
A meu ver, chega-se, ou pode-se chegar, a uma caricatura das comunidades
humanas pesquisadas, cujo funcionamento seria explicado exclusivamente a partir
de um viés culturalista, perdendo-se, assim, a visão de conjunto da sociedade e
de suas diferentes instâncias. Desta maneira, corre-se o risco de desconsiderar
que “a história é um conjunto dentro do qual existem interconexões contínuas”,
conforme nos reitera Pierre Vilar, em entrevista recentemente publicada na
França [4], na qual o grande historiador marxista reafirma os pontos básicos do
seu pensamento e de sua postura como historiador: a preocupação com a totalidade, ou seja, com a busca
de uma visão globalizante das
sociedades humanas. Trata-se, entretanto, de uma totalidade hierarquizada, que não deve ser
confundida – como querem alguns – com um simples inventário dos acontecimentos
do passado, algo impossível e absurdo de ser realizado. Uma totalidade que
englobe os aspectos substantivos e essenciais da realidade social pesquisada,
contribuindo para que esta possa ser racionalmente
explicada.
Quanto à micro-história, tendência
presente com grande força na historiografia atual, penso que da maneira como
foi enfocada, por exemplo, por Giovanni Levi, em artigo incluído na coletânea A Escrita da História,
organizada por Peter Burke [5], é perfeitamente aceitável para quem mantém a
preocupação com as articulações entre a escala micro e o conjunto social.
Afirma Giovanni Levi:
“A questão é
(...) como definir as margens – por mais estreitas que possam ser – da
liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas e contradições dos sistemas normativos que o
governam.” [6]
Semelhante postura metodológica
choca-se, contudo, com aquela adotada em alguns trabalhos, que acabam
incorrendo na absolutização do particular, desligado de suas interconexões com
o geral, dando origem a uma “história em migalhas”, expressão já consagrada na
historiografia e também empregada por P. Vilar na entrevista acima citada. [7]
De minha parte, desenvolvo uma linha de
pesquisa que denomino de história
social e política do Brasil contemporâneo, uma vez que trabalho com uma
história política que entendo estreitamente relacionada com o que se poderia
chamar de história social do período. Não concebo, por exemplo, estudar o
fenômeno do tenentismo restrito à política, pois, a meu ver, é necessário
relacioná-lo com o social e, em particular, com os condicionantes específicos
das corporações armadas. [8] Conforme é assinalado por Ciro Flamarion Cardoso,
em prefácio ao meu livro Os Militares
e a Reação Republicana (As Origens do Tenentismo):
“Voltando-se
contra as visões parcializadas e reducionistas, no caso, as que circulam acerca
da História de nosso país nos anos 20, Anita demonstra, com o uso adequado de
pertinente documentação, quão falaciosas são as tentativas de construir uma
interpretação “militarista” ou corporativa do Tenentismo e, mais geral, da
participação dos militares na política. (...) A tarefa desmistificadora deste
estudo não deixará de provocar debates e polêmicas que (...) mostrarão, não
duvido, que os civis, os militares e suas ações só são inteligíveis no bojo da crise
que naqueles anos levou ao desmonte de uma determinada estruturação global –
econômica, política, intelectual – da sociedade brasileira.” [9]
Reconheço a autonomia relativa da política e
considero um avanço considerável que a atual Nova História Política esteja
voltada para esta problemática. Mais
uma vez, o perigo reside, no meu entender, na absolutização dessa autonomia,
que pode deixar de ser, na prática, relativa para tornar-se absoluta. Na
realidade, tanto K. Marx quanto F. Engels e, em especial, A. Gramsci foram os
grandes formuladores desse caráter relativo da autonomia das instâncias
superestruturais, dentre as quais inclui-se a polítrica. Basta citar obras como
O 18 Brumário de Luis Bonaparte
(de Marx) e a correspondência de Engels [10] nos últimos anos de sua vida para
comprovar tal afirmação. Trata-se de conseguir articular com competência as
diversas instâncias da sociedade, hierarquizando-as e explicando os seus
condicionamentos mútuos.
Concluindo, o
historiador, do meu ponto de vista, “deveria sintetizar os conhecimentos sobre
o homem e sobre a evolução da humanidade”, nas palavras de P. Vilar. [11] Uma
postura teórica e metodológica que se contrapõe à da “história em migalhas” ou
história em compartimentos estanques que, a meu ver, não consegue explicar os
fenômenos presentes nas sociedades humanas. No máximo, alcança descrever
detalhes esparsos, perdendo o relato histórico, o sentido de síntese, de
explicação do funcionamento das comunidades humanas.
NOTAS
[1] CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS,
Ronaldo (org.). Domínios da História:
ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 1-43.
[2] Idem,
p. 155.
[3] Idem,
p. 153.
[4] VILAR, Pierre. “La mémoire vive des
historiens”. In: BOUTIER, J. et DOMINIQUE, J. (orgs.) Passés Recomposés. Paris: Autrement, 1995, p. 28.
[5] LEVI, Giovanni. “Sobre a
micro-história”. In: BURKE, Peter (org.). A
Escrita da História. São Paulo: EDUNESP, 1992, p. 133-161.
[6] Idem,
p. 135. Grifos meus.
[7] VILAR, Pierre, op. cit., p.282.
[8] Cf. PRESTES, Anita Leocadia. A Coluna Prestes. 3 ed. São Paulo:
Brasiliense, 1991.
____ . Os Militares e a Reação Republicana (As Origens do Tenentismo).
Petrópolis: Vozes, 1994.
[9] CARDOSO, C. F. “Prefácio”. In:
PRESTES, A. L. Os Militares e a Reação
Republicana. Op. cit., p. 10-11.
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