Por Marcelo Badaró Mattos
As
origens da expressão “intelectual” tal como a concebemos hoje estão associadas
a fenômenos do século XIX. Na segunda metade daquele século, na Rússia, algo
semelhante ao que definimos como intelectual era nomeado por meio da expressão intelligentsia. Foi, entretanto, na
França, em 1898, com a intervenção em que se destacou Émile Zola, que surgiu o
uso contemporâneo do termo. Já naquele momento, no “Manifeste des
intellectuels”, a respeito do caso Dreyfus, o termo já se carregava de duplo
sentido: de um lado, a atividade intelectual era associada ao cultivo da instrução;
de outro, à intervenção e ao engajamento no debate público.
Tal
parece ser a compreensão de Benoît Denis, para quem os intelectuais podem ser
definidos como:
[...] um
conjunto relativamente heterogêneo de atores sociais (cientistas, universitários,
escritores...) que têm em comum, além de serem profissionais que trabalham no
campo das ideias e dos saberes, de terem chegado, nos seus setores respectivos
de atividades, a um grau suficiente de autonomia e prestígio para reivindicar
um direito de intervir nos negócios públicos. (DENIS, B. Literatura e engajamento.
Bauru: Edusc, 2002, p. 210)
Edward
Said [...] insistiu não apenas no papel público do intelectual, mas também na
sua dimensão de “representação” de determinada mensagem – o que deveria levá-lo
a assumir posições “embaraçosas”, lembrando muitas vezes o que se quer
esquecer:
Quero também
insistir no fato de o intelectual ser um indivíduo com um papel público na
sociedade, que não pode ser reduzido simplesmente a um profissional sem rosto,
um membro competente de uma classe, que só quer cuidar de suas coisas e deseus
interesses. A questão central para mim, penso, é o fato de o intelectual ser um
indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma
mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e também
por) um público. E esse papel encerra uma certa agudeza, pois não pode ser
desempenhado sem a consciência de ser alguém cuja função é levantar
publicamente questões embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas (mais do que
produzi-los); isto é, alguém que não pode ser facilmente cooptado por governos ou
corporações e cuja raison d’être é
representar todas as pessoas e todos os problemas que são sistematicamente
esquecidos ou varridos para debaixo do tapete. (SAID, E. Representações do intelectual. São Paulo: Companhia das Letras,
2005, p. 25-26)
Entretanto,
atualmente é mais comum encontrarmos a concepção do intelectual como simples
especialista em determinado campo do conhecimento ou atividade artística. É
comum encontrarmos mesmo o repúdio à ideia de engajamento. A definição do papel
do intelectual que associa funções de elaboração artística ou científica à
intervenção pública não é nem nunca foi consensual. Em especial os intelectuais
que assumem a perspectiva de que sua intervenção pública possui um “partido”,
no sentido de que representa um projeto político – e mais ainda quando esse
projeto é o da transformação social –, defrontam-se há muito com as críticas
que apontam a “contaminação” da investigação científica ou do produto artístico
pela ideologia do seu produtor. É uma operação típica do pensamento conservador
tentar separar essa dupla dimensão do papel do intelectual, criando a ilusão de
que os intelectuais poderiam existir como uma categoria social autônoma, como
técnicos especialistas, como cientistas neutros ou como artistas que produzem a
arte pela arte.
A
essa operação ideológica conservadora sempre se opôs a análise que, além de
caracterizar os intelectuais como possuidores de vínculos sociais claros, chama
a atenção para o fato de a produção intelectual e artística estar sempre
atravessada pelos conflitos de seu tempo. Um caminho para compreender tal
processo foi aberto pelas análises de Antonio Gramsci. De início, podemos
atentar para aquela distinção observada por Gramsci entre a operação
intelectual e a função intelectual nas sociedades capitalistas. Criticando a
tentativa de encontrar o que seria intrínseco à atividade intelectual, Gramsci
defendeu que o correto seria analisá-la no interior do conjunto das relações
sociais. Por isso afirmou que “todos os homens são intelectuais, mas nem todos
os homens têm na sociedade a função de intelectual” (GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Volume 2. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 18).
Por
este caminho, compreendemos que os intelectuais nem formam um grupo à parte das
relações sociais fundamentais da sociedade de classes em que vivemos, nem
tampouco possuem atributos específicos, especiais, que os distinguem dos demais
mortais. Exercem uma função específica, que na maioria dos casos é, ainda
segundo o próprio Gramsci, conservadora em relação à ordem, pois a atividade
dos intelectuais é quase sempre associada ao exercício de um papel de
“prepostos do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da
hegemonia social e do governo político” (idem,
p. 21).
Recorrendo
novamente a Gramsci, podemos recordar também o par conceitual que ele
estabelece entre “intelectual tradicional” e “intelectual orgânico”. Mais do
que uma taxonomia classificatória rígida (Gramsci operava dialética e
historicamente com suas díades) ou uma chave para o entendimento da opção do
indivíduo que exerce a função intelectual, a distinção se aplica entre, de um
lado, uma concepção (Gramsci fala mesmo de uma “utopia social”): a do
intelectual tradicional como pensador autônomo em relação aos conflitos políticos
e sociais de sua época, portador de um conhecimento neutro, livre de vínculos
maiores com quaisquer das classes sociais fundamentais, cuja base histórica, já
superada no século XX, era o clérigo católico do Antigo Regime. De outro lado,
uma realidade contemporânea: o intelectual orgânico, por ele exemplificado na
figura do empresário – organizador da produção e dirigente político –, figura
que, por pertencimento ou adesão, representa um dado projeto político,
portanto, de classe. Por certo que a autodefinição do intelectual tradicional
tem peso relevante em sua atuação social. Porém, os que resistem
representando-se como intelectuais tradicionais, embora muitas vezes
sinceramente aferrados ao valor da autonomia do conhecimento, recusam-se a
enxergar que, na maior parte das vezes, atuam como intelectuais orgânicos e,
quase sempre, das classes dominantes, pois uma das operações envolvidas nos
processos de construção da hegemonia seria justamente a tarefa de atrair o
máximo de intelectuais tradicionais para os projetos de classe dominantes.
Quando
se ressalta que o caráter orgânico do intelectual contemporâneo se define por
seu papel de representação de um projeto de classe, entendido como projeto
político, é direta a analogia com algumas conhecidas passagens da obra de Marx
e de Engels, como no seu Manifesto do
Partido Comunista, quando associam organizar-se como classe a constituir-se
em partido, afirmando a “organização dos proletários em classe, e deste modo em
partido político” (MARX, K. e ENGELS, F. “Manifesto do Partido Comunista”. In:
___ . Obras escolhidas. Lisboa:
Avante!; Moscou: Progresso, 1982, v. 1, p. 115). Cabe aí o cuidado, porém, de
perceber que naquele momento o conceito de partido com o qual trabalhavam Marx
e Engels era distinto do que orientará as análises a partir do final do século
XIX. O sentido político/partidário, tanto dos intelectuais em Gramsci quanto do
projeto em Marx, é dado pelo vínculo de classe.
Resta
ainda chamar a atenção para o fato de que Gramsci parte justamente da assertiva
de Marx e Engels, de que defender um projeto político de classe corresponde à
função de partido, ainda que essa tarefa seja assumida por uma entidade não
partidária, no sentido institucional que o termo ganharia depois. Por isso, periódicos,
grupos de pressão e organizações da sociedade civil (chamados pelos gramscianos
de “aparelhos privados de hegemonia”) podem assumir tal papel em determinados
contextos históricos. Claro deve estar que com isso Gramsci não pretendeu negar
a importância do partido propriamente dito. Pelo contrário, valorizou-o
profundamente, conseguindo condensar, em suas elaborações, a ideia do partido
como uma necessária direção política das lutas, com o sentido de que o partido
nasce na classe e das lutas de classe. Nascido e inserido na classe, como seu
setor mais consciente, a tarefa do partido para Gramsci era também a de
promover “uma reforma intelectual e moral”.
Para
tanto, a relação partido/intelectual é central. Gramsci apresenta como tarefa
da classe trabalhadora formar seus próprios intelectuais orgânicos. Entendendo
esse intelectual como um organizador e persuasor permanente, nada próximo dessa
figura que o militante partidário. Nesse sentido gramsciano, todos os membros
de um partido político devem ser considerados como intelectuais (com diferenças
e hierarquias), pois a sua função [...] é diretiva e organizativa, isto é,
educativa, isto é intelectual” (GRAMSCI, 2000, p. 25). Indo além, segundo essa
concepção, o próprio partido é em si um “intelectual coletivo” (idem).
FONTE: MATTOS,
Marcelo Badaró. E. P. Thompson e a
tradição de crítica ativa do materialismo histórico. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2012, p. 15-19.
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