Por Atilio A. Boron
Na truculenta operação encenada nos arredores de Islamabad há múltiplas interrogações que permanecem na sombra, e a tendência do governo dos Estados Unidos a desinformar a opinião pública torna ainda mais suspeito esta operação. Uma Casa Branca vítima de uma doentia compulsão de mentir (recordar a historieta das "armas de destruição em massa" existentes no Iraque, ou o infame Informe Warren, que sentenciou que não houve conspiração no assassinato de Kennedy, obra do "lobo solitário" Lee Harvey Oswald ) nos obriga a catar com pinças cada uma de suas afirmações. Era Bin Laden ou não? Por que não pensar que a vítima pudesse ser qualquer outro? Onde estão as fotos, as provas de que o falecido era o procurado? Se se lhe fez uma prova de DNA, como se obteve, onde estão os resultados e quais foram as testemunhas? Por que não se o apresentou diante da consideração pública, como se fez, sem ir mais longe, com os restos do comandante Ernesto "Che" Guevara? Se, como se assegura, Osama se ocultava em uma mansão convertida em uma verdadeira fortaleza, como é possível que, em um combate que se estendeu pelo espaço de quarenta minutos, os integrantes do comando estadunidense regressassem a sua base sem receber sequer um arranhão? Tão pouca pontaria teriam os defensores do fugitivo mais procurado do mundo, dos quais se dizia que possuiam um arsenal de mortíferas armas de última geração? Quem estava com ele? Segundo a Casa Branca, o comando matou Bin Laden, seu filho, outros dois homens de sua custódia e uma mulher que, asseguram, foi ultimada ao ser utilizada como um escudo humano por um dos terroristas. Também se disse que mais duas pessoas ficaram feridas no combate. Onde estão, que se vai fazer com elas? Serão levadas a julgamento, se lhes tomaram declarações para arrojar luz sobre o ocorrido, falarão em uma conferência de imprensa para narrar o acontecido? Pelo que parece, esta "façanha" passará à história como uma operação mafiosa, ao estilo da matança de San Valentín ordenada por Al Capone para liquidar os capos da banda rival.
Osama vivo era um perigo. Sabia (ou sabe?) demais, e é razoável supor que a última coisa que o governo estadunidense queria era levá-lo a julgamento e deixá-lo falar. Em tal caso, se desataria um escândalo de enormes proporções ao revelar as conexões com a CIA, os armamentos e o dinheiro supridos pela Casa Branca, as operações ilegais montadas por Washington, os obscuros negócios de sua família com o lobby petroleiro estadunidense e, muito especialmente, com a família Bush, entre outras ninharias. Em suma, um testemunho ao que havia que calar de um jeito ou de outro, como Muammar Kadafi. O problema é que já morto Osama se converte para os jihadistas islâmicos em um mártir da causa, e o desejo de vingança seguramente estimulará as muitas células adormecidas da Al-Qaida a perpetrar novas atrocidades para vingar a morte de seu líder.
Tampouco deixa de chamar atenção o quão oportuna foi a morte de Bin Laden. Quando o incêndio da pradaria ressecada do mundo árabe desestabiliza uma área de crucial importância para a estratégia de dominação imperial, a notícia do assassinato de Bin Laden reinstala a Al-Qaida no centro do cenário. Se há algo que a esta altura é uma verdade incontrovertível é que essas revoltas não respondem a nenhuma motivação religiosa. Suas causas, seus sujeitos e suas formas de luta são eminentemente seculares e em nenhuma delas - desde Tunez até o Egito, passando pela Líbia, Bahrein, Yemen, Síria e Jordânia - o protagonismo recaiu sobre a Irmandade Muçulmana ou a Al-Qaida. O problema é o capitalismo e os devastadores efeitos das políticas neoliberais e dos regimes despóticos que se instalaram nesses países e não as heresias dos "infiéis" do Ocidente. Mas o imperialismo estadunidense e seus sequazes na Europa se desdobraram, desde o princípio, para fazer aparecer essas revoltas como produto da malícia do radicalismo islâmico e da Al-Qaida, coisa que não procede. Santiago Alba Rico observou com razão que em pleno auge desses protestos seculares - antipolíticas de ajuste do FMI e do Banco Mundial - um grupo fundamentalista desconhecido até então assassinou o cooperante italiano Vittorio Arrigoni, ativista do Movimento de Solidaridade Internacional, em uma casa abandonada na Faixa de Gaza. Poucas semanas depois, um terrorista suicida explode uma bomba na praça Yemaa el Fna, um dos destinos turísticos mais notáveis em sólo do Marrocos senão de toda a África, e mata ao menos 14 pessoas. "Agora – continua Alba Rico - reaparece Bin Laden, não vivo e ameaçador, senão que em toda a glória de um martírio adiado, estudado, cuidadosamente encenado, um pouco inverossímil. 'Se fez justiça', diz Obama, mas a justiça reclama tribunais e juízes, procedimentos formalizados, uma sentença independente. "Nada disso ocorreu, nem ocorrerá". Mas o fundamentalismo islâmico, ausente como protagonista das grandes mobilizações do mundo árabe, aparece agora na primeira página de todos os jornais do mundo e seu líder como um mártir do Islã assassinado a sangue frio pela soldadesca do líder do Ocidente, a Casa Branca, que sabia desde meados de fevereiro deste ano que nessa fortaleza nas redondezas de Islamabad se refugiava Bin Laden, esperou o momento oportuno para lançar seu ataque com vistas a colocar favoravelmente Barack Obama na iminente campanha eleitoral pela sucessão presidencial.
Há um detalhe em nada anedótico que torna ainda mais imoral a bravata estadunidense: poucas horas depois de ser abatido, o cadáver do presumido Bin Laden foi lançado ao mar. A mentirosa declaração da Casa Branca diz que seus restos receberam sepultura respeitando as tradições e os ritos islâmicos, mas não foi assim. Os ritos fúnebres do Islã estabelecem que se deve lavar o cadáver, vesti-lo com uma mortalha, proceder a uma cerimônia religiosa que inclui orações e honras fúnebres para logo em seguida proceder ao enterro do defunto. Além disso, se especifica que o cadáver deve ser depositado diretamente na terra, recostado sobre seu lado direito e com a cara dirigida para a Meca. Com que celeridade tiveram que fazer o combate, a recuperação do cadáver, sua identificação, a obtenção do DNA, o traslado a um navio da Armada estadunidense, situado a pouco mais de 600 quilômetros do subúrbio de Islamabad onde se produziu o enfrentamento e, finalmente, navegar até o ponto onde o cadáver foi lançado ao mar como para respeitar os ritos fúnebres do Islã? Na realidade, o que se fez foi abater e "desaparecer" com uma pessoa, presumidamente Bin Laden, seguindo uma prática sinistra utilizada sobretudo pela ditadura genocida que assolou a Argentina entre 1976 e 1983. Ato imoral que não só ofende as crenças muçulmanas senão que também a uma milenar tradição cultural do Ocidente, anterior inclusive ao cristianismo. Como o atesta magistralmente Sófocles em Antígona, privar um defunto de sua sepultura acende as mais recôndidas paixões. Essas que hoje devem estar incendiando as células do fundamentalismo islâmico, desejosas de dar uma lição aos infiéis que ultrajaram o corpo e a memória de seu líder. Barack Obama acaba de dizer que depois da morte de Osama Bin Laden o mundo é um lugar mais seguro para se viver. Equivoca-se de ponta a ponta. Provavelmente, sua ação não fez senão despertar um monstro que estava adormecido. O tempo dirá se é assim ou não, mas sobram razões para se ficar muito preocupado.
Atilio Boron é diretor do Programa Latino-americano de Educação à Distância em Ciências Sociais (PLED), Buenos Aires, Argentina, http://www.atilioboron.com/
Tradução: Sergio Granja
Revisão Silvia Mundstock
FONTE: FUNDAÇÃO LAURO CAMPOS
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