terça-feira, 9 de novembro de 2010

O PCP e a República


III Encontro Civilização ou Barbárie

O PCP e a República
João Arsénio Nunes

As comemorações este ano do centenário da República portuguesa referiram-se quase sempre à história da chamada I República e, mais difusamente, ao “republicanismo”. Raramente se prestou atenção àquilo que é um traço, aliás não muito vulgar na comparação internacional, da história contemporânea de Portugal, a inexistência centenária ininterrupta de um regime republicano – pervertido e asfixiado durante quase 50 anos, mas nunca liquidado. Em Portugal fala-se em I República, mas ninguém se lembraria de falar em II República a propósito do fascismo salazarista, nem portanto há lugar para falar em III República após o 25 de Abril.
Procurarei aqui equacionar alguns aspectos da relação entre a história da República e o Partido Comunista que, pelo seu papel de principal força dirigente do movimento operário, teve em vários momentos um papel importante no passado, e poderá tê-lo no futuro (mesmo no futuro próximo) na configuração concreta do que é a República como regime constitucional da sociedade portuguesa.
A questão da relação entre comunismo e república não é uma originalidade portuguesa. Ela enraíza no facto concreto de que, por toda a parte desde a primeira metade do século XIX, a afirmação do movimento operário se dá a partir da apropriação e reivindicação da universalidade dos direitos proclamados pela Revolução Francesa, em geral património comum das ideias e movimentos republicanos. Daí mesmo derivam as conhecidas declarações do Manifesto de 1848, segundo o qual o primeiro passo na revolução operária é “a conquista da democracia pela luta” e “por toda a parte os comunistas trabalham na ligação e entendimento dos partidos democráticos de todos os países”. A ideia democrática identificava-se, na Europa de meados do século XIX, com a ideia de república, como aliás derivava da tradição jacobina. No período da II Internacional, a reivindicação republicana foi em alguns partidos socialistas, como é o caso da social-democracia alemã, secundarizada ou esquecida. Noutros porém, como em França com Jaurès, a defesa da República e a ideia de que o socialismo representava a extensão às condições materiais do princípio republicano de igualdade dos cidadãos foram coordenadas essenciais. Em geral foram as esquerdas socialistas que mais valorizaram o combate republicano, como aconteceu com Rosa Luxemburg na Alemanha e com Lenine na Rússia. Este dedicou mesmo um artigo ao regicídio de 1908 em Portugal, considerando a luta pela República uma das questões candentes do movimento revolucionário em diversos países europeus e afirmando a simpatia do socialismo internacional para com os republicanos portugueses. Também em Portugal a questão republicana separou os moderados “possibilistas” da esquerda socialista de Azedo Gneco, fazendo a última em diversos momentos causa comum com o movimento republicano.
A revolução de 5 de Outubro de 1910, em que muitos militantes operários participaram, ocorre num período em que o sindicalismo revolucionário de matriz anarquista (anti-política) se torna dominante no movimento operário português. É de um grupo de militantes sindicalistas que emerge em 1919 a primeira organização comunista inspirada pela revolução russa e a ideia soviética, a Federação Maximalista Portuguesa (FMP). O contexto em que nasce a FMP é marcado pela restauração da República, activamente participada pelos militantes operários, em combate contra a tentativa monárquica e os restos do sidonismo. Numa altura em que em vários países europeus parecia poder vencer a revolução socialista iniciada na Rússia, objectivo para que se fundara a Internacional Comunista (IC, Comintern), a acção da FMP circunscreve-se à propaganda da ideia soviética, vista como modelo de validade universal que num curto prazo faria “o mundo mudar de base”, como auguravam os versos da Internacional. Um ano e meio depois, quando é criado o Partido Comunista Português (PCP), as condições internacionais e nacionais já se tinham alterado. Dominante é então, nos militantes operários que aceitavam a necessidade da acção política e da organização partidária, a ideia da necessidade da “frente única” para defrontarem a violenta reacção burguesa à criação da CGT e às conquistas sociais do imediato pós-guerra. A breve trecho se verifica que essa reacção não se circunscreve à acção das organizações patronais e às perseguições anti-sindicalistas, mas envolve o regime político existente. O PCP afirma assim a sua simpatia pelo programa dos radicais republicanos que ascendem ao poder na sequência do golpe de 19 de Outubro de 1921 e encontra-se na primeira linha da denúncia das manobras que acabarão por conduzir à sua queda. Na sequência desta orientação (em sintonia com as teses da “frente única” aprovadas nos III e IV congressos da IC), o PCP participa em 1924/25 nas manifestações contra a ameaça de ditadura e em apoio da acção do governo da Esquerda Democrática e, após a queda deste, integra uma lista de coligação com o Partido Republicano da Esquerda Democrática nas eleições de Novembro de 1925.
Em 29 de Maio de 1926, no momento em que triunfava em Lisboa o golpe militar que poria termo à I República, o PCP encontrava-se reunido no seu II Congresso e denuncia o golpe como tendente à introdução de um regime fascista. No período subsequente ao 28 de Maio, o partido vive uma situação de crise profunda, parte da crise geral do movimento operário. O republicanismo permanece no entanto vivo entre as camadas populares e nas vanguardas operárias. Apesar da ausência de directivas organizadas, militantes comunistas participam nos combates armados por ocasião das revoltas republicanas de 3/7 de Fevereiro de 1927, de 20 de Julho de 1928 e de 26 de Agosto de 1931.
Sem dúvida que a primeira década de existência do PCP, que aliás estava longe de poder ser considerado uma força enraizada na classe operária e no território nacional, se tem de considerar como uma infância política e organizativa, a que corresponderam oscilações entre tendências oportunistas e extremistas, aliás parte das oscilações e crises da Internacional Comunista.
A reorganização de 1929, iniciada em pleno período da política classe contra classe, assentou em primeiro lugar numa exigência necessária de afirmação e construção dos instrumentos de autonomia da classe operária, de maneira a pôr termo definitivamente à subalternidade que até aí sujeitara o movimento operário a ser instrumento de jogo político alheio. Com avanços e recuos, ganhos e perdas, essa afirmação é conseguida. Duma inicial recusa teórica de contacto com os grupos democrático-burgueses do reviralho republicano, passa-se a partir de 1934 para uma definição de objectivos relacionada com a equacionação de fases e etapas da revolução. Neste quadro, a relação com o antifascismo burguês volta a ser possível. Apesar da consolidação do regime fascista, da violência da repressão e mesmo, no final da década, de uma situação de crise organizativa, na segunda metade dos anos 30 são lançadas as bases duma relação orgânica e ideológica profundamente renovada do PCP com a tradição democrático-republicana. Dela são manifestações o lançamento (apesar de todas as fragilidades) da Frente Popular Portuguesa – cujo comité de acção no exílio foi sucessivamente presidido por figuras tão representativas da história da República como Afonso Costa e Bernardino Machado - e o nascimento do movimento neo-realista, em cujas origens se situa uma iniciativa cultural juvenil com a proclamada intenção de “republicanizar a República”. Não menos importante é a definição desde esta época de que a unidade anti-fascista implicava em primeiro lugar o enraizamento na acção de massas através da política sindical e associativa, em que desempenharam papel de relevo colectividades populares vinculadas à tradição republicana.
O grande desenvolvimento do movimento anti-fascista em Portugal nos anos da II Guerra mundial articulou a reorganização e reimplantação do PCP com a consolidação de relações orgânicas deste com as oposições burguesas anti-fascistas vulgarmente conhecidas como republicanos (na maior parte aliás directamente derivadas, na sua origem, das correntes partidárias da I República), em organizações como o MUNAF e o MUD. Desde estes anos o PCP foi, ao mesmo tempo, muito claro em afirmar que o objectivo da revolução democrática não podia ser o “regresso ao 5 de Outubro”, bem como no enunciado das condições fundamentais para uma efectiva ruptura com o regime fascista: a criação dum governo provisório que garantisse as liberdades políticas e a realização de eleições, a satisfação das exigências económicas básicas das populações e o desmantelamento do aparelho do Estado, nomeadamente da máquina repressiva e da organização corporativa. Deveu-se em parte decisiva à acção do PCP a mobilização popular destes anos, nomeadamente em torno da campanha presidencial de Norton de Matos (cujo passado como figura política de relevo na I República era bem conhecido). E foi ainda no contexto dessa mobilização que nasceu o MUD Juvenil, cuja acção se prolongou por uma década e que organicamente ligou a temática democrático-republicana da sua génese à crescente influência ideológica do marxismo na nova geração, com enorme repercussão a longo prazo.
Ainda na segunda metade da década de 40, a questão da República foi objecto de atenção da imprensa do PCP a propósito da hipótese de restauração monárquica, que no pós-guerra foi equacionada em círculos do regime. Sublinhando que “o regime actual não é o dos republicanos”, em 1946 o Avante! caracterizava a hipótese de restauração monárquica como “um perigo”, pela natureza extremamente reaccionária das correntes que no seio do regime salazarista a propunham . Ao mesmo tempo, considerando que o verdadeiro problema político não se reduzia ao formalismo institucional, o PCP pronunciou-se sempre pela colaboração e aceitação nos organismos de unidade democrática dos monárquicos anti-fascistas.
A primeira metade dos anos 50 registou, no contexto internacional da guerra fria e da agudização da repressão, uma quebra no relacionamento entre o PCP e as correntes do republicanismo histórico, que não é alheia ao enfraquecimento da dinâmica da Oposição. A segunda metade da década vai no entanto conhecer um momento alto dessa dinâmica, de que é facto mais emblemático o fenómeno Delgado. Para além dos factores pessoais e das divisões internas do regime salazarista que o potenciaram, vale a pena notar que, a precedê-lo, encontramos de novo a capacidade de iniciativa do PCP em relação às correntes republicanas e na valorização política da própria ideia de República – apta, nesta fase, tanto a unir os anti-fascistas como a dividir os partidários do salazarismo. O Avante! desenvolve larga propaganda das comemorações do 5 de Outubro e – em 1955, trinta anos depois da queda do governo “canhoto” presidido por José Domingues dos Santos – dá relevo ao discurso do velho líder da Esquerda Democrática nessas comemorações. Mais importante do que isso: por iniciativa do grande intelectual comunista que foi Mário Sacramento, realiza-se em 1957 o Congresso Republicano de Aveiro, com a participação de intelectuais comunistas e de republicanos diversos, incluindo figuras da I República, como Marques Guedes, ideologicamente muito distante do PCP. Algumas das propostas programáticas avançadas no congresso por intelectuais comunistas, como Armando Castro e Flausino Torres, influenciaram a redacção dos programas eleitorais da Oposição nas “eleições” para a Assembleia Nacional e contribuíram para a difusão entre os anti-fascistas do programa de liberdade e da política anti-monopolista do PCP. O congresso republicano de 1957 ficaria na História como o primeiro de uma série de três – o segundo em 1969, aproveitando as condições da “primavera marcelista”, o terceiro em 1973, já com directa influência nas condições que geraram o 25 de Abril. A história dos três Congressos republicanos (o último já com o nome de congresso da oposição democrática) revela uma crescente influência das ideias e das propostas do PCP e do pensamento de esquerda em geral e é um documento representativo da transformação ideológica da oposição anti-fascista nesses anos.
Não cabe aqui analisar o contexto histórico de grandes mudanças internacionais e nacionais que explicam essa transformação, nem mesmo resumi-la. Mas é importante assinalar que para ela contribuiu decisivamente o renovo de iniciativa e de implantação do PCP, com a análise e orientação política consagradas no relatório de Álvaro Cunhal, Rumo à Vitória, e no VI Congresso do PCP (1965). Situando-se embora na linha de análises e propostas desenvolvidas desde 1943, esse relatório e os documentos que dele derivaram actualizavam e aprofundavam a análise das forças sociais e políticas capazes de contribuírem para o derrube do regime e definiam sinteticamente as mudanças a realizar pela revolução democrática e nacional. Contribuíram assim concretamente para a credibilização e divulgação de um projecto coerente de mudança social e política que influenciou círculos muito para além da directa influência do PCP. A radicalização e mobilização dos sectores católicos progressistas e, nessa conjuntura, da própria corrente socialista em torno de Mário Soares, herdeira directa da tradição republicana burguesa, que em 1973 funda o PS, deriva em parte da necessidade de se confrontarem com o PCP e o seu programa. A aceitação que nesses anos regista entre sectores crescentes da pequena-burguesia a ideia de socialismo e da necessidade de ruptura com o regime é tributária, não só do prestígio do PCP, como da evolução dessas correntes. Apesar do fracasso da FPLN e de nunca ter sido possível reorganizar formas de aliança orgânica dos democratas semelhantes ao que haviam sido o Munaf e o Mud, a convergência em múltiplas acções e a divulgação de um “senso comum” favorável ao socialismo contribuíram decisivamente para a emergência do 25 de Abril e para o desenvolvimento revolucionário que se lhe seguiu.
Foi neste contexto que se formou o regime democrático, quer dizer, renasceu a República. A Constituição de 1976 é a sua forma institucional, “culminação natural de uma revolução bem sucedida” (G. Canotilho). Esta natureza revolucionária da actual Constituição da República portuguesa está sempre muito presente no espírito dos seus inimigos, que por isso não sossegam e não dão por concluído o processo contra-revolucionário (que sucedeu ao processo revolucionário de 1974/75 e até hoje não foi interrompido) enquanto não alcançarem a sua abolição.
Têm razão. A Constituição, i.e. a república como está hoje juridicamente estabelecida, é realmente fruto de uma revolução. Mesmo depois de abolidas as suas disposições mais avançadas – o objectivo socialista, a reforma agrária, as nacionalizações e o controle operário - , manteve-se “um núcleo de conquistas fundamentais que permanece, como marca genética, na democracia política, na democracia social, na democracia educativa, no embrião de Estado-providência” (F.Rosas).
Após mais de trinta anos de retrocessos em relação ao conteúdo democrático e de sentido socialista da Constituição, hoje não nos encontramos perante apenas mais um ataque e a possibilidade de mais um retrocesso.
O que as condições criadas pela acumulação da crise económico-financeira à crise política e moral da sociedade portuguesa – num contexto internacional também instável – hoje colocam, é a possibilidade de uma alteração decisiva que põe em causa os princípios básicos do Estado social e simultaneamente da organização política democrática. É emblemática, a este respeito, a proposta de revisão constitucional há tempos anunciada por uma comissão do PSD presidida – não é um acaso – pelo mais conhecido dirigente da Causa Real.
O propósito de abolir os princípios constitucionais sobre segurança do emprego e reduzir o Serviço Nacional de Saúde a uma função residual, em conjunto com a persistente tentativa de pôr em causa o sufrágio proporcional, correspondem já a pôr em causa um núcleo essencial do Estado democrático, quer dizer, da República.
Apesar de todos os retrocessos económicos, sociais e políticos, o processo de democratização e modernização da sociedade portuguesa desencadeado com o 25 de Abril não parou. Vários analistas reconhecem, com desconsolo mais ou menos disfarçado, que “sociologicamente” o país é maioritariamente de esquerda. Embora a crise actual possa vir a favorecer, como acontece noutros países, a emergência de tendências fascizantes com apoio de massa, até hoje em Portugal isso não se verifica.
Na história centenária da República, os trabalhadores e a democracia registaram avanços quando a luta de classe encontrou formas orgânicas capazes de conquistarem a adesão de largas camadas do povo e, ao nível político, de fazer convergir forças social e culturalmente diferentes e dividir os inimigos.
Estaremos hoje à altura da tarefa, quer dizer, de salvar a República?

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