quarta-feira, 23 de junho de 2010

Para a compreensão crítica da realidade brasileira

Dermeval Saviani: compreensão crítica da realidade brasileira exige referencial marxista

Por Ana Cristina
Nesta entrevista ao "Portal da Fundação Maurício Grabois" (http://fmauriciograbois.org.br/portal/), Dermeval Saviani comenta diferentes temas relacionados à educação. Professor emérito da Universidade de Campinas (UNICAMP), Saviani dedicou seus aproximadamente 40 anos de carreira à pesquisa educacional, com ênfase nos campos da filosofia e da história da educação brasileira. Suas pesquisas são referência na área, e já recebeu o reconhecimento da comunidade científica através de prêmios como Medalha do Mérito Educacional do Ministério da Educação; Prêmio Zeferino Vaz de produção científica e Prêmio Jabuti em Educação, no ano de 2008.

Quais as pesquisas que o senhor realizou até agora podem ser classificadas como as mais importantes?
R.: Ao longo de minha carreira concluí 20 projetos de pesquisa que podem ser classificados em três modalidades: Política da educação e legislação educacional; filosofia da educação no Brasil; e Teorias da educação e pedagogia.

Na primeira modalidade destacam-se “O conceito de sistema na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 4.024/61)”, que foi minha tese de doutorado, publicada com o título “Educação brasileira: estrutura e sistema”; “O congresso nacional e a educação brasileira”, minha tese de livre-docência, publicada com o título “Política e educação no Brasil”; e “A nova lei da educação (LDB): trajetória, limites e perspectivas”, que versou sobre a atual LDB.

Na segunda modalidade registro “Tendências e correntes da educação brasileira”, publicada no livro “Filosofia da educação brasileira”.

E na terceira modalidade sobressaem “Pedagogia histórico-crítica”; “História das idéias pedagógicas no Brasil; e “O espaço acadêmico da pedagogia no Brasil: perspectiva histórica e teórica”, que resultou no livro “A pedagogia no Brasil: história e teoria. Estes dois últimos projetos contaram com financiamento do CNPq na modalidade “Bolsa de produtividade em pesquisa”.


O senhor recebeu o prêmio Jabuti, em 2008, por um livro que é resultado de uma pesquisa. Pode nos dar mais detalhes sobre a pesquisa e sobre o livro?
R.: Nesse caso trata-se do projeto “História das idéias pedagógicas no Brasil”, cujos estudos preliminares se iniciaram em 1989. Sistematizada a proposta, o projeto foi encaminhado ao CNPq para apoio na modalidade da “Bolsa de Produtividade em Pesquisa” que, uma vez aprovada, entrou em vigência em agosto de 1996, estendendo-se até fevereiro de 2004. Após o término da bolsa organizei o material e publiquei o livro com o mesmo título “História das idéias pedagógicas no Brasil”, em 2007. É esse livro que foi agraciado, em 2008, com o prêmio Jabuti ao ser classificado como a melhor obra nas áreas de Educação, Psicologia e Psicanálise.

Nessa pesquisa analisei o desenvolvimento das idéias pedagógicas na história da educação brasileira a partir da identificação, classificação e periodização das principais concepções educacionais, desde suas origens no século XVI até os dias atuais. Começo abordando a educação indígena que precedeu a chegada dos portugueses e abordo as idéias pedagógicas distribuindo-as em quatro grandes períodos, a saber:

1º Período (1549-1759): Monopólio da vertente religiosa da pedagogia tradicional, subdividido nas seguintes fases:

1. Uma pedagogia brasílica ou, o período heróico (1549-1599);

2. A institucionalização da pedagogia jesuítica ou o ratio studiorum (1599-1759).

2º Período (1759-1932): Coexistência entre as vertentes religiosa e leiga da pedagogia tradicional, subdividido nas seguintes fases:

1. A pedagogia pombalina ou, as idéias pedagógicas do despotismo esclarecido (1759-1827);

2. Desenvolvimento da pedagogia leiga: ecletismo, liberalismo e positivismo (1827-1932);

3º Período (1932-1969): Predominância da pedagogia nova, subdividido nas seguintes fases:

1. Equilíbrio entre a pedagogia tradicional e a pedagogia nova (1932-1947);

2. Predomínio da influência da pedagogia nova (1947-1961);

3. Crise da pedagogia nova e articulação da pedagogia tecnicista (1961-1969).

4º Período (1969-2001): Confronto entre a concepção produtivista de educação e as pedagogias críticas, subdividido nas seguintes fases:

1. Predomínio da pedagogia tecnicista, manifestações da concepção analítica de filosofia da educação e concomitante desenvolvimento da visão crítico-reprodutivista (1969-1980);

2. Ensaios contra-hegemônicos: pedagogias da “educação popular”, pedagogias da prática, pedagogia crítico-social dos conteúdos e pedagogia histórico-crítica (1980-1991);

3. O neoprodutivismo e suas variantes: neo-escolanovismo, neoconstrutivismo e neotecnicismo (1991-2001).

Seu trabalho é pontuado pela orientação marxista num ambiente em que há, tradicionalmente, rejeição às ideias de Marx. Como se dá essa relação? Qual o segredo de tamanha aceitação pela comunidade científica?
R.: Desde que iniciei minha atividade docente, em 1967, simultaneamente na universidade e no ensino médio, considerei que o trabalho intelectual deveria se pautar pela busca da verdade sem quaisquer constrangimentos. Estávamos em plena ditadura militar e eu tinha a impressão de que, em boa parte, a autocensura parecia ainda mais forte do que a censura. Ou seja, eu observava que vários colegas tendiam a evitar tratar de temas que tivessem alguma implicação política, considerados perigosos na situação em que vivíamos.

De minha parte procurei afastar toda espécie de autocensura tratando dos problemas sociais e políticos com a mesma objetividade com que tratava das questões geográficas, físicas, biológicas. E fui me aprofundando na compreensão crítica da realidade brasileira, o que exigia um referencial também crítico que me foi fornecido pelo marxismo.

Meu trabalho com os alunos, primeiro na graduação e depois também na pós-graduação, deu-se nessa linha de aprofundamento articulando a teoria com a prática, o que implicou uma forte ligação entre as pesquisas que fui desenvolvendo, cujos resultados eram publicados na forma de livros e artigos e as atividades de ensino.

Rompi, assim, com uma divisão muito freqüente entre os intelectuais que tendem a considerar que a academia, a universidade, é o lugar da teoria, da discussão de idéias; e que a luta política se dá nos partidos, nos sindicatos, nas fábricas, no parlamento, nas instâncias governamentais. Diferentemente disso, sempre encarei meu trabalho na universidade como integrado à luta política mais ampla pela transformação da sociedade, pela defesa dos interesses dos trabalhadores a partir do entendimento científico do desenvolvimento do modo de produção da existência humana no processo histórico, entendimento esse que se explicita nas análises elaboradas por Marx que vêm tendo continuidade nas contribuições dos demais teóricos do marxismo.

Para desenvolver um trabalho com essas características na universidade avaliei que era necessário assegurar os espaços para a investigação séria e objetiva e para a discussão aberta dos resultados alcançados. Isso implicava assumir tarefas organizativas e administrativas, o que me levou à implantação de programas de pós-graduação e à sua coordenação, à organização de orientação coletiva de dissertações e teses, assim como à organização e direção de grupos de pesquisas, além de participar da fundação de sociedades científicas no campo da educação.

Nesse procedimento guiei-me sempre pelo critério de que as atividades administrativas e burocráticas são atividades-meios devendo, portanto, estar sempre subordinadas e a serviço das atividades-fins. Assim, elas devem ser realizadas com cuidado observando-se suas regras sem desperdício de energias, as quais devem ser dirigidas para as atividades-fins.

Esse entendimento é de grande importância para nós, que nos situamos à esquerda no espectro político, porque, em geral, as dificuldades ao nosso trabalho muito frequentemente provêm da cobrança de determinadas exigências formais que nós tendemos a descurar por considerá-las de menor importância.

Diversamente, procurei sempre considerar que, exatamente por serem secundárias, não vou me desgastar com as questões formais. Simplesmente procuro cumpri-las, sujeitando-as ao trabalho principal voltado para a pesquisa e o ensino. Com isso, creio ter conseguido aliar uma produção acadêmico-científica consistente e relevante a um comportamento de certo modo exemplar no que se refere à observância das regras de convivência acadêmica. Penso que é nesse quadro que se encontra a razão da aceitação e do prestígio angariados junto à comunidade científica.

Em sua opinião, quais são as perspectivas da Educação e da Pedagogia enquanto ciência?
R.: Digamos que educação é o fato, um fenômeno empiricamente verificável; um dado da realidade que se manifesta em todas as sociedades. Esse fato pode ser conhecido, analisado, produzindo-se a seu respeito ideias, representações, teorias. A pedagogia está visceralmente ligada à educação como conhecimento, como teoria que a ela se refere. No entanto, importa ter presente que, se toda pedagogia é teoria da educação, nem toda teoria da educação é pedagogia. Como assinalei em meu livro “A pedagogia no Brasil: história e teoria”, p. 80-81, o conceito de pedagogia se reporta a uma teoria que se estrutura a partir e em função da prática educativa. A pedagogia, como teoria da educação, busca equacionar, de alguma maneira, o problema da relação educador-educando, de modo geral, ou, no caso específico da escola, a relação professor-aluno, orientando o processo de ensino e aprendizagem. Assim, não se constituem como pedagogia aquelas teorias que analisam a educação pelo aspecto de sua relação com a sociedade não tendo como objetivo formular diretrizes que orientem a atividade educativa, como é o caso das teorias que chamei de “crítico-reprodutivistas”. Considerando que a ideia dominante de ciência traz a marca forte da concepção positivista, que a limita à emissão apenas de juízos fatuais, excluindo os juízos de valor, a relação da pedagogia com a ciência se revestiu de um caráter problemático. Embora no campo educacional tenha havido uma tendência a dotar a pedagogia de cientificidade, essa aspiração era sempre objeto de contestação. Hoje é comum falar-se em ciências da educação, no plural, incluindo-se nesse âmbito várias modalidades como a sociologia da educação, a psicologia da educação, a biologia educacional, a economia da educação, demografia educacional etc. Tais ciências, vê-se claramente, se constituem como teorias preocupadas apenas com o conhecimento do fenômeno educativo e não com a realização do ato educativo, como é o caso da pedagogia. Por vezes se considera a pedagogia como uma das ciências da educação; outras vezes nega-se à pedagogia o caráter de ciência tendo em vista seu direcionamento à prática e, em consequência, seu envolvimento com a questão dos valores. Entretanto, hoje em dia, tendo em vista a tendência em se superar a visão positivista de ciência, reconhece-se, sem maiores contestações, o caráter científico da pedagogia, entendida como ciência da e para a prática educativa.


O que significa receber o título de pesquisador emérito do CNPq?
R.: Sem dúvida, trata-se de algo bastante gratificante, por várias razões. Em primeiro lugar, porque se trata da mais importante agência de apoio à pesquisa científica e tecnológica do país. Em segundo lugar porque participo diretamente das atividades desse órgão desde 1981 estando, portanto, ligado ao CNPq por quase 30 anos, ou seja, metade de sua existência, já que foi criado em 1951. Com efeito, integrei o Comitê Científico do CNPq na área de Ciências Humanas como representante da educação por dois mandatos consecutivos, de 1981 a 1984, momento em que contribuí para a criação do Comitê Assessor de Educação que passou a contar com 5 membros, todos eles dedicados a tratar das demandas específicas da produção científica na área da educação. A partir daí atuei constantemente como assessor “ad hoc” e vim a participar novamente, em 1998 e 1999, do Comitê Assessor de Educação do qual fui coordenador. Daí decorre a terceira razão de minha satisfação com o título de pesquisador emérito, pois ele expressa uma valorização da área de educação no âmbito do CNPq, sendo esse o primeiro título desse tipo conferido por esse Conselho Nacional a um representante da área educativa. Gostaria, portanto, de dividi-lo com todos os colegas que integram a comunidade científica do campo educacional que, a meu ver, está sendo homenageada com esse reconhecimento oficial.

Em que o senhor está trabalhando agora? Quais são os seus projetos?
R.: Atualmente estou dando prosseguimento às atividades regulares como a coordenação geral do Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR), orientação de dissertação de mestrado e teses de doutorado, supervisão de projetos de pós-doutorado, elaboração de textos sobre temas específicos decorrentes de convites para proferir conferências e participar de seminários e congressos, os quais normalmente se convertem em artigos publicados em revistas científicas. Além disso, estou, no momento, organizando o livro “Educação em diálogo” que espero publicar ainda neste ano. Em seguida pretendo me dedicar a um projeto de pesquisa sobre as máximas e provérbios na educação.

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