Por Marcos César de Oliveira Pinheiro
Em 7 de novembro de 1917 (25 de outubro no antigo calendário russo), o mundo capitalista foi surpreendido com a notícia da instalação, na Rússia, de um sistema político inteiramente novo, nunca antes experimentado na História. Um partido revolucionário, cujo principal dirigente era Lênin (1870-1924), passou a exercer seu poder recém-conquistado para fazer reformas radicais, empenhado numa autêntica transformação revolucionária do país. Apoiava-se teoricamente em Marx e Engels, fundadores do materialismo histórico, popularmente chamado de marxismo. Ou ainda filosofia da práxis, segundo o comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937).
A revolução, liderada pelo Partido Bolchevique, se fez sob a bandeira de “Pão, Terra e Paz”. Essa proposta expressava os anseios dos setores populares russos. Em 1917, o país estava imerso na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que agravou drasticamente as já precárias condições de vida do povo russo. A grande aspiração era que acabasse a guerra, que houvesse pão, pois a fome era terrível na Rússia naquele momento, e que houvesse terra para os camponeses. A má distribuição de terras (alta concentração nas mãos de poucos) condenava à miséria 85% da população, que vivia no campo. Foi correta a bandeira empunhada pelos bolcheviques e contribuiu para que se avançasse rumo ao socialismo da recém-criada União Soviética.
Contudo, no percurso histórico da União Soviética foram cometidos graves erros. Em nome da doutrina marxista se ergueu a barbárie do stalinismo, cujo “modelo dogmático” influenciou fortemente o modo como os partidos comunistas de vários países, inclusive no Brasil, interpretaram a realidade em que estavam inseridos e formularam suas ações políticas. Não bastassem os fatores internos. Somava-se a isso o fato de que contra o ideário de Marx se levantaram quase todos os movimentos reacionários do século XX, forçando o movimento comunista internacional a colocar em primeiro plano a defesa da União Soviética das ameaças advindas do mundo capitalista.
Não obstante o fracasso da tentativa de construção do socialismo na União Soviética, que culminou com o seu desaparecimento em 1991, valem as ponderações de Francisco Fernández Buey, no prólogo do seu livro:
“Se continua a haver comunistas neste mundo é porque o comunismo dos séculos XIX e XX, o dos tetravós, bisavós, avós e pais dos jovens de hoje, não foi só poder e despotismo. Foi também, por antonomásia, ideário e movimento de libertação dos anônimos. Há um Livro Branco do comunismo que está por ser reescrito. Muitas das páginas deste Livro, hoje quase desconhecido para os mais jovens, foram esboçadas por pessoas anônimas que deram o melhor das suas vidas na luta pela liberdade em países nos quais não havia liberdade; na luta pela universalização do sufrágio em países nos quais o sufrágio era limitado; na luta em favor da democracia em países onde não havia democracia; na luta em favor dos direitos sociais da maioria onde os direitos sociais eram ignorados ou só concedidos a uma minoria. Muitas dessas pessoas anônimas, na Espanha e na Grécia, na Itália e na França, na Inglaterra e em Portugal, e em muitas outras partes do mundo, nunca tiveram nenhum poder nem tiveram nada a ver com o stalinismo, não oprimiram despoticamente os semelhantes, não justificaram a razão de Estado nem mancharam as mãos com a apropriação privada do dinheiro público.
Ao dizer que o Livro Branco do comunismo está por ser reescrito, não estou propondo a restauração de uma velha Lenda para pôr de lado ou fazer esquecer outras verdades amargas contidas nos Livros Negros. Não é isso. Nem estou falando de inocência. Como sugeriu Brecht num poema célebre, nem mesmo o melhor do comunismo do século XX, o daqueles que gostariam de ter sido amistosos com o próximo, pôde, naquelas circunstâncias, ser amável. A história do comunismo do século XX tem de ser vista como o que é, como uma tragédia. O século XX aprendeu bastante sobre o fruto da árvore do Bem e do Mal, de modo que ninguém pode se atrever a empregar a palavra ‘inocência’ sem mais nem menos. Falo, pois, de justiça. E a justiça é também matéria de historiografia”. (BUEY, 2004: p. 27)
Portanto, a história dos movimentos político-sociais, a partir do século XIX, não comporta uma versão tipo bandidos e mocinhos, como vem fazendo os intelectuais comprometidos com os donos do poder. Com a derrocada do chamado “socialismo real”, pode-se assistir a mais uma ofensiva da ideologia burguesa, a fim de revigorar a tese de que o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento da história da humanidade. Uma das manifestações mais emblemáticas dessa ofensiva é, primeiramente, o artigo “The end of history”, em 1989, publicado na revista norte-americana The national interest e, posteriormente, o livro “O fim da história e o último homem”, editado no Brasil pela Editora Rocco, em 1992. Ambos de autoria de Francis Fukuyama. Esse processo de presentificação ou naturalização da história é tratado, com muita propriedade, por Marx no seu texto “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” (MARX, 2008).
De imediato, o emaranhado de datas e nomes presentes no texto pode, precipitadamente, induzir o leitor a identificá-lo à tradição positivista da história das datas, dos nomes e da sucessão dos fatos. Ao contrário, em Marx percebe-se que a descrição densa dos acontecimentos encerra sempre um conceito. Trata-se de um texto de particular importância para os historiadores. A problematização, os argumentos e os pressupostos teóricos e metodológicos, que fundamentam Marx no preparo da obra “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, ensejam a abordagem de várias questões historiográficas. Nele, Marx assume uma reflexão crítica sobre a política liberal, as concepções burguesas sobre a história e sua instrumentalização no jogo político. Isto é, descortina o processo de presentificação da história no “reino da burguesia” (a sociedade capitalista), em que o devir da história é esvaziado, uma vez que a burguesia se apresenta como o fruto e o fim da história. Nos seus Manuscritos econômico-filosóficos (MARX, 2004) , Karl Marx já havia rompido com a idéia de naturalização da história e assumido uma postura crítica, qual seja, o estranhamento do cotidiano como natural, tudo merece ser explicado, nada é natural.
No entanto, em tempos de hegemonia das “modernas democracias de mercado”, a fórmula “marxismo = modelo soviético” encontra-se consagrada e difundida nos meios acadêmicos e na mídia. Juntamente com o fim da União Soviética, decreta-se o fim do marxismo. Porém, como afirma Gramsci, “Marx inicia intelectualmente uma época histórica que provavelmente durará séculos, isto é, até o desaparecimento da sociedade política [o Estado] e o advento da sociedade regulada [sociedade comunista]. Somente quando isto ocorrer, a sua concepção do mundo será superada” (GRAMSCI, 2004: p. 243).
A derrocada do império soviético não inviabiliza a filosofia da práxis. Ela continua importante para analisar a realidade, a situação concreta e transformá-la.
A derrocada do império soviético não inviabiliza a filosofia da práxis. Ela continua importante para analisar a realidade, a situação concreta e transformá-la.
Retomando Francisco Fernández Buey, faz-se necessário distinguir o que Marx fez e disse como comunista e o que outros fizeram, ao longo do tempo, em seu nome. Seria uma injustiça acusar Marx pelos erros e delitos dos que, com boa ou má vontade, continuaram utilizando seu sobrenome. Buey pede que sejamos razoáveis:
"A ninguém ocorreria, hoje em dia, lançar sobre os ombros de Jesus de Nazaré a responsabilidade pelos delitos cometidos, ao longo da história, por todos aqueles que se chamaram cristãos, desde Torquemada até o general Pinochet, passando pelo general Franco. E, com toda a certeza, trataríamos como sectário ou insensato quem pretendesse estabelecer uma relação causal entre o Sermão da Montanha e a Inquisição romana ou espanhola. Não sei se, no século XVI, alguém pensou que Jesus de Nazaré tinha de pedir perdão aos índios da América pelas barbaridades que os cristãos europeus fizeram com eles em nome de Cristo." (BUEY, 2004: p. 25)
Na leitura de Marx deve-se considerar: o rigor filológico, a atenção aos contextos históricos e a total ausência de beatice. Isso vale não só no que se refere a Marx como também no que diz respeito à história do comunismo (idem: p. 26)
Referências bibliográficas:
BUEY, Francisco Fernández. Marx (sem ismos). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2004.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume 1. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: ____ . A revolução antes da revolução II. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
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