Por Ana Pato
Se o movimento revolucionário muito deve a Marx e a Engels, é igualmente verdadeira a afirmação de que, com eles, a filosofia e a teoria do conhecimento científico se enriqueceram de forma indelével. E o interessante é que estas são duas faces da mesma moeda.
Há duzentos anos nascia Friedrich Engels. Estudou o mundo, elaborou teoria, interveio nele na prática. Foi um revolucionário.
Engels foi um dos fundadores do comunismo científico. Juntamente com Marx, muniu o proletariado da arma teórica para a transformação do mundo. Apesar de o nome Karl Marx ser popularmente mais conhecido, o facto é que a obra (e a vida) de Marx é inseparável da de Engels. Comentava Lénine que: «As lendas da Antiguidade contam exemplos comoventes de amizade. O proletariado da Europa pode dizer que a sua ciência foi criada por dois sábios, dois lutadores, cuja amizade ultrapassa tudo o que de mais comovente oferecem as lendas dos antigos». A afinidade de ambos era completa. A obra é comum.
Mas o que faz o adjectivo científico à frente de comunismo?
Um dos grandes contributos de Engels e de Marx foi a elevação do sonho a projecto. As concepções utopistas que dominaram as ideias socialistas do século XIX, nota Engels, queriam descobrir um sistema novo e mais perfeito de ordem social. Mas pretendiam implantá-lo na sociedade vindo de fora, por meio da propaganda. Nessas concepções, caracteriza Engels, “o socialismo é a expressão da verdade, da razão e da justiça absolutas, e basta que seja descoberto para que, pela sua própria força, conquiste o mundo”. Contudo, esses novos sistemas sociais, constata, “estavam de antemão condenados à utopia; quanto mais elaborados nos seus pormenores, mais tinham de se perder na pura fantasmagoria”.
Mas, aquilo que inicialmente era um desejo, pleno de ideias de justiça e boas intenções, ganhava agora a força da possibilidade real. O ponto é este: “Para fazer do socialismo uma ciência ele tinha primeiro de ser colocado sobre um terreno real”. Para transformar o mundo, importava explicar o mundo através do próprio mundo. Isto é uma concepção materialista.
Contudo, o materialismo também se revelava limitado, como mostrou Engels. Fruto da sua época, este era um materialismo mecanicista – o facto de a ciência da natureza mais desenvolvida ser a mecânica conduziu à aplicação do seu padrão a domínios como a química ou a biologia, onde as leis mecânicas valem certamente, mas não são determinantes – e anti-dialéctico – isto é, incapaz de apreender a natureza e a história no seu desenvolvimento, enquanto processo. Era, pois, necessário elevar este materialismo a um materialismo dialéctico. E aplicá-lo aos domínios da natureza, da sociedade e do pensar. Marx e Engels abriram essa porta.
Se Marx desenvolveu sobretudo a teoria económica, Engels analisa e desenvolve questões fundamentais da filosofia e das ciências naturais e sociais. A Engels devemos a aplicação da dialéctica materialista ao conhecimento das leis da natureza. Se não é estranho dizer que o movimento revolucionário muito deve a Marx e a Engels, não é certamente mentira a afirmação de que, com eles, a filosofia e a teoria do conhecimento científico se enriqueceram de forma indelével. E o interessante é que estas são duas faces da mesma moeda.
Ora, foi precisamente porque partiram dessa posição materialista e dialéctica que puderam mostrar como o socialismo é o resultado necessário do desenvolvimento das forças produtivas e, consequentemente, fazer a crítica do socialismo utópico demonstrando que (usando as palavras de Lénine) “não são as tentativas bem intencionadas dos homens de coração generoso que libertarão a humanidade dos males que hoje a esmagam, mas a luta de classe do proletariado organizado”. Foi Engels, aliás, quem assinalou, pela primeira vez, o papel de vanguarda do proletariado, a partir do estudo da situação da classe operária em Inglaterra. Como resume Lénine, “Engels foi o primeiro a declarar que o proletariado não é só uma classe que sofre, mas que a miserável situação económica em que se encontra empurra-o irresistivelmente para a frente e obriga-o a lutar pela sua emancipação definitiva. E o proletariado em luta ajudar-se-á a si mesmo. O movimento político da classe operária levará, inevitavelmente, os operários à consciência de que não há para eles outra saída senão o socialismo. Por seu lado, o socialismo só será uma força quando se tornar o objectivo da luta política da classe operária”.
Sucede que, para descobrir as vias reais para o socialismo, era necessário estudar a sociedade – naquilo que ela é – e descobrir as suas leis de desenvolvimento – prevendo, nos traços gerais, aquilo que ela devirá – para que, identificando as contradições e as forças motrizes, estas últimas melhor saibam conduzir a luta em que estão inseridas, quer queiram, quer não. Recorrendo a uma ideia hegeliana, trata-se de conhecer a necessidade. A liberdade, escreve Engels, “não reside na independência sonhada relativamente às leis da Natureza, mas no conhecimento dessas leis, e na possibilidade, com ele dada, de planificadamente as fazer operar para determinadas finalidades. Isto vale tanto por referência às leis da Natureza exterior, como àquelas que regulam a existência corpórea e espiritual do próprio ser humano: duas classes de leis que nós, no máximo, podemos separar, uma da outra, na representação, mas não na realidade [efectiva]”. Isto é, pois, válido quer para o domínio da natureza, quer para o domínio da sociedade.
Ora, uma penetração científica nos domínios do ser natural ou social requer uma transposição do nível fenoménico da realidade, bem distinta de uma abordagem positivista ou empirista, marcada pelo mero registo e ordenação do que aparece imediata e positivamente. Pois, como diz Marx, a ciência “seria supérflua se a forma fenoménica e a essência das coisas coincidissem imediatamente”. A questão está em captar a “conexão interna” dos fenómenos, o seu “vínculo interior”. Trata-se de captar o processo (no qual o fenómeno corresponde apenas a uma etapa) cujo movimento se determina na resolução de contradições. Como diz Engels: “uma exposição exacta do sistema do mundo, do desenvolvimento dele e do [desenvolvimento] da humanidade – bem como da imagem especular deste desenvolvimento nas cabeças dos seres humanos –, apenas pode, portanto, ser posta de pé por um caminho dialéctico”, o que significa atender às “universais acções recíprocas”. A ciência é tributária de uma filosofia materialista dialéctica.
Assim, tomando o ser social, uma correcta acção política dirigida à transformação revolucionária não pode ser correctamente dirigida se não partir de uma abordagem materialista e dialéctica com a qual se compreenda e domine os processos objectivos nas quais as diferentes forças estão inseridas. Aqui reside a unidade de teoria e prática. Isto é muito diferente de navegar à vista, tomando apenas o imediato. Também é muito diferente de substituir possibilidades objectivas por desejos e utopias bem intencionadas. Escusado será dizer que uma teoria que parta de tal abordagem necessariamente se actualiza e transforma com o próprio mundo em transformação e o com o desenvolvimento da ciência da época em que se insere. Por aqui se vê como um movimento que se queira revolucionário, de facto, reclama uma abordagem científica. Trabalhosa é certo. Como diz Marx: “Não há estrada real para a ciência e só têm possibilidade de chegar aos seus cumes luminosos aqueles que não temem fatigar-se a escalar as suas veredas escarpadas”.
Fonte: https://vozoperario.pt/jornal/2020/11/28/da-utopia-a-ciencia/
FONTE: ODiario.info