quarta-feira, 28 de março de 2012
terça-feira, 27 de março de 2012
CONVOCAÇÃO DE PROTESTO CONTRA AS "COMEMORAÇÕES" DO GOLPE DE 1964
Convocação para que, em protesto contra as "comemorações" dos militares de pijama, que estarão enaltecendo o golpe de 64, que se coloque, nos dias 31/03 e 01/04 (verdadeiro dia do golpe), panos pretos nas janelas, fitas pretas nas roupas e nos retrovisores e antenas dos carros.
GOLPE NUNCA MAIS!!!
TORTURA NUNCA, MAIS!!
JULGAMENTO E PRISÃO PARA OS TORTURADORES!!!
PELA COMISSÃO DA MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA JÁ!!!
PROTESTEMOS E NOS INDIGNEMOS SEMPRE!!!
segunda-feira, 26 de março de 2012
Qual democracia?
Por Ricardo Antunes.*
No mês de outubro do ano que acabou de findar, publiquei o livro O Continente do Labor. Instigado por Marcus Orione a escrever para Juízes para Democracia, pensei: qual é a contribuição da nossa América Latina para a democracia, em um mundo onde os EUA se julgam os senhores, ainda que sejam seus principais detratores? Onde o Banco Central Europeu e o FMI depõem governantes, como o da Grécia, ainda que este fosse um servo fiel? Que destituí o grotesco Berlusconi, impondo diretamente o (novo) nome “confiável” do mercado para livrar a república italiana do burlesco?
Nosso continente, que nasceu sob o signo da espoliação, foi marcado, todos tristemente sabemos, pelo ciclo do terror de estado, pela devastação feita pelas horripilantes ditaduras militares da tortura, do arbítrio, das catacumbas, da polpuda corrupção, dos grandes capitais e das grandes burguesias.
Temerosa frente à expansão das revoluções socialistas (como Bolívia em 1952 e Cuba em 1959), a direita latinoamericana respondeu com os golpes militares, desencadeando uma era das contrarrevoluções, nas palavras de Florestan Fernandes: foi a solução encontrada pelo capital para desestruturar e derrotar os avanços sociais e políticos da classe trabalhadora. A brutal repressão ao movimento operário, seus sindicatos e às esquerdas; a inserção da América Latina no processo de internacionalização do capital; a abertura do parque produtivo aos capitais externos e a ingerência crescente dos EUA, foram vitais para a deflagração das ditaduras.
Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, a lista é grande e poderia continuar. E a nossa ditadura fez escola, ainda que a chilena e a argentina tenham sido ainda mais vorazes. Vale destacar: os seus algozes estão definhando, hoje, nos cárceres da Argentina e Uruguai. Triste Brasil, que só vai à frente quando se trata de atraso!
Já que o tema que escolhemos é o da democracia na América Latina, foi com o socialista Salvador Allende que vivenciamos um dos mais belos momentos da nossa história política recente. Mas podemos voltar no tempo e recordar também a majestosa Revolução dos negros do Haiti, em 1791, a primeira a abolir o trabalho escravo, ou ainda o nosso Quilombo dos Palmares, que no século XVII, levou à constituição de uma comunidade negra livra e coletiva. Ou ainda a Revolução Mexicana de 1910, popular e camponesa, que deixou seu contributo efetivo para o que se poderia denominar como verdadeiro poder popular na América Latina.
Mas, quando o ciclo das ditaduras parecia se exaurir, adentramos na era da desertificação neoliberal. A aplicação do receituário formulado no chamado Consenso de Washington significou uma agressiva política de privatização do setor público e estatal (siderurgia, telecomunicações, energia elétrica, setor bancário etc), aprofundando ainda mais a subordinação do continente latinoamericano aos interesses financeiros hegemônicos, especialmente àqueles sediados nos Estados Unidos. Privatização, desregulamentação, fluxo livre de capitais, financeirização, terceirização e precarização intensificada do trabalho, trabalho temporário (um bom exemplo encontramos nas maquiladoras no México e nos países da América Central), desemprego estrutural, aumento da miserabilidade, estas foram as conquistas da “democracia neoliberal” em que tantos, tantos, acreditaram.
Mas nosso continente do labor parece ter uma força prometeica: contra a arquitetura institucional-eleitoral das classes dominantes, formatação cuja anatomia se encontra na preservação a qualquer preço dos capitais, os povos indígenas, os campesinos, os sem-terra, os operários despossuídos, as camadas médias assalariadas e empobrecidas, os trabalhadores precarizados, os desempregados, homens e mulheres, esboçam novas formas de ação e de luta social e política, obstando governos e grupos que tem sido dominantes há muito tempo.
Nos Andes, com sua cultura indígena milenar, pré-hispânica, ressurgem as rebeliões: a Bolívia dos povos indígenas e camponeses avança na luta contra a exploração e a sujeição. Os morros e bairros populares de Caracas buscam formas alternativas de organização popular, através dos conselhos comunais. Na Argentina, especialmente durante crise de 2001, os piqueteros expuseram o seu flagelo e os trabalhadores e trabalhadoras sem trabalho ocuparam as fábricas denominadas como recuperadas, que totalizaram mais de duas centenas espalhadas pelo país.
Da rebelião de Chiapas (iniciada em 1994) até a experiência da Comuna de Oaxaca (2005), deflagrada a partir de uma greve de professores da rede pública daquela comunidade, ou, mais recentemente, das lutas dos estudantes e trabalhadores no Chile, onde as famílias se endividam, vendem suas casas para manter seus filhos nas universidades quase todas privatizadas, cujo objetivo não é outro senão o lucro. E é esse explosivo e massivo levante estudantil, com apoio dos pais, professores e opinião pública, que está exigindo mudanças profundas e recuperando a história interrompida desde a queda de Allende. Sua luta é vital, para o desenho da democracia substantiva e o resgate do socialismo no Chile.
Qual democracia? foi o título dado a este artigo: ela é tecida por quem e para quem? A resposta provocativa que ofereci no livro O Continente do Labor, veio sob a forma de interrogação: não estarão os trabalhadores e as trabalhadoras em nossa América Latina, os povos andinos, amazônicos, indígenas, negros, brancos, homens e mulheres, dos campos e das cidades, operários e operárias, a proclamar que a América Latina não está mais disposta a suportar a barbárie, a subserviência, a iniquidade que, em nome da “democracia das elites”, assume de fato a postura do império, da autocracia, da truculência, da miséria e da indignidade e do capital? Não estaremos começando a redesenhar as novas vias abertas na América Latina?
* Publicado originalmente no jornal Juízes para a Democracia, publicação oficial da Associação dos Juízes para a Democracia, Ano 14 – nº 56 – Dezembro – 2011 / Fevereiro – 2012
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Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador da coleção Mundo do Trabalho, da Boitempo Editorial. Organizou os livros Riqueza e miséria do trabalho no Brasil (2007) e Infoproletários: a degradação real do trabalho virtual (2009), ambos publicados pela Boitempo. É autor, entre outros, de Adeus ao trabalho? (Cortez), Os sentidos do trabalho (1999) e O caracol e sua concha (2005), além de O continente do labor, lançado no ano passado, esses três últimos também pela Boitempo Editorial.
FONTE: Blog da Boitempo
A ESTRATÉGIA NACIONAL-LIBERTADORA E O REFORMISMO NA HISTÓRIA DO PCB
Por Anita Leocadia Prestes
Texto apresentado no seminário promovido pelo PCB por ocasião do 90º aniversário da sua fundação, em 21/03/2012.
Em artigo publicado ainda em 1980, intitulado “A que herança os comunistas devem renunciar?”, tive a oportunidade de mostrar que, desde os anos 20, a estratégia do PCB – a revolução democrático-burguesa, agrária e anti-imperialista ou nacional e democrática, como foi denominada posteriormente, – tinha um caráter reformista burguês. Tratava-se, na luta contra o imperialismo, de realizar uma revolução nacional-libertadora, que viesse a propiciar um desenvolvimento capitalista autônomo no Brasil, livre, portanto, da dominação do imperialismo. Tal desenvolvimento capitalista deveria propiciar as condições para a realização de uma segunda etapa da revolução, a etapa socialista. Não se percebia que o capitalismo em nosso país encontrava novas formas de expandir-se, nas condições de subordinação aos grandes grupos internacionais e de manutenção de relações de produção não capitalistas na agricultura. (Prestes, A.L.,1980)
O reformismo na política do PCB se explicitava através dessa concepção da revolução em etapas, marcada pelo ideal nacional-libertador, uma variante da ideologia nacionalista, de cunho burguês, cuja presença tornou-se expressiva na cultura e na política brasileiras a partir da Primeira Guerra Mundial. Podemos dizer que as concepções nacional-libertadoras adotadas pelo PCB frutificaram no Brasil graças à sua aceitação por amplos setores sociais influenciados pelo pensamento nacionalista. Entretanto, como advertiu E. Hobsbawm, “o perigo real para os marxistas é o de aceitar o nacionalismo como ideologia e programa, ao invés de encará-lo realisticamente como um fato, uma condição de sua luta como socialista” (Hobsbawm, 1980: 310).
Também contribuíram para a adoção pelo PCB da concepção etapista da revolução as resoluções aprovadas em 1928, no VI Congresso da Internacional Comunista – entidade à qual o PCB estava filiado desde 1924 -, e reiteradas em 1929, na 1a Conferência dos PPCC da América Latina. Não se percebia e rejeitava-se algo que havia sido levantado nessa mesma ocasião por José Carlos Mariátegui: o caráter socialista da revolução na América Latina, embora o comunista peruano registrasse a necessidade de considerar as peculiaridades do capitalismo em cada país do nosso continente e defendesse a luta por um socialismo que não fosse “nem cópia nem decalque, mas sim invenção heróica” dos nossos povos (Mariáteguei, 2008: 153). Mariátegui escrevia:
Sem prescindir do emprego de nenhum elemento de agitação anti-imperialista, nem de nenhum meio de mobilização dos setores sociais que eventualmente podem contribuir para esta luta, a nossa missão é explicar e demonstrar às massas que somente a revolução socialista poderá opor ao avanço do imperialismo um obstáculo definitivo e verdadeiro. (Idem: 51)
Sem negar que a revolução socialista constitui um processo, que em cada país terá suas particularidades, Mariátegui verificou que, no século XX, o imperialismo penetrara profundamente e se articulara estreitamente com as diversas relações de produção existentes em cada nação do continente latino-americano. Tornara-se, portanto, impossível derrotar o imperialismo sem avançar no caminho da revolução socialista. O problema era, e continua sendo, como, na prática, empreender tal caminho sem desviar-se para o etapismo e o decorrente reformismo, de acordo com o qual a solução revolucionária acaba sendo abandonada.
Como não poderia deixar de ser, a fidelidade a uma falsa estratégia levou o PCB a adotar táticas que mudavam ao sabor dos acontecimentos. Embora os comunistas estivessem sempre nas primeiras fileiras dos lutadores por todas as causas justas do povo brasileiro, o Partido carecia de autonomia ideológica, ou seja, de um programa revolucionário que contribuísse para a aglutinação e a formação das forças sociais e políticas capazes de conduzir as lutas de nosso povo rumo à revolução socialista. Ficava-se sempre a reboque de setores liberais e/ou nacionalistas; perdia-se a oportunidade de, através das lutas por objetivos parciais, organizar e educar as massas para a necessidade de ir adiante, de preparar-se para a revolução socialista.
Um bom exemplo da permanência dessa falsa estratégia de que estamos falando é a aprovação da “Declaração de Março” de 1958 pela direção do PCB. Com esse documento, abandonava-se a tática esquerdizante do “Manifesto de Agosto” de 1950, reiterada no IV Congresso de 1954, de derrubada do Governo, a qual era substituída por uma nova formulação – a luta por um governo nacionalista e democrático, nos marcos do regime capitalista, enquanto a estratégia não era tocada. Naquele momento, a aprovação da “Declaração de Março” contribuiu para garantir não só a unidade como a própria sobrevivência do PCB, seriamente abalado por grave crise, provocada em grande medida pelos acontecimentos relacionados com o XX Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), realizado no início de 1956.
Cabe ressaltar que, embora tivesse contribuído para a elaboração e a aprovação da “Declaração de Março”, com o objetivo de manter a unidade das fileiras partidárias, Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral do PCB, revelaria preocupação com o perigo de uma “tática reformista, que nos colocaria a reboque da burguesia”. Em artigo publicado na mesma ocasião, Prestes escrevia:
A crítica superficial de nossos erros políticos pode conduzir agora ao erro oposto, à preocupação exclusiva com o movimento que se processa gradualmente, abandonando a meta revolucionária da classe operária. (PCB, 1980:35)
A conciliação com as tendências reformistas na direção do PCB, com o intuito de assegurar a unidade partidária, foi a atitude adotada por Prestes durante cerca de vinte anos, até o final da década de 70, quando viria a romper com o Comitê Central (Prestes,L.C.,1980), convencido de que se tornara inviável transformar o PCB num partido revolucionário, ou seja, numa organização que superasse o reformismo, explicitado principalmente por meio da ideologia do nacional-desenvolvimentismo e da concepção da revolução por etapas (Prestes, 2010: 162).
O esforço para alcançar a unidade a qualquer preço marcou fortemente a história do movimento comunista internacional e não poderia deixar de se fazer presente no PCB, uma vez que, desde sua fundação, o partido fez parte desse movimento. Tal empenho, frequentemente, teria como consequência o abandono de posições de princípio e, em particular, a renúncia aos objetivos revolucionários dos comunistas e a conciliação com as tendências reformistas.
A luta por um governo nacionalista e democrático, a partir de 1958, alimentou uma forte ilusão nas possibilidades de conquistar, através da pressão de massas, uma correlação de forças dentro do governo que permitisse a adoção de medidas capazes de assegurar o desenvolvimento de um capitalismo autônomo e democrático no Brasil. A partir de tal patamar, previa-se que os comunistas poderiam abrir caminho para as transformações de caráter socialista no país.
Em que medida, contudo, os comunistas atuavam efetivamente no sentido de formar uma força política capaz de conduzir tal processo revolucionário no Brasil? Na realidade, tentava-se a formação de uma aliança de classes e setores sociais supostamente possuidores de interesses e reivindicações comuns, na luta contra o imperialismo e o latifúndio e pela democracia. Entretanto, não se levava em conta algo que o conceito de bloco histórico, proposto por A. Gramsci, pressupõe: o momento político dessa aliança. “Sua constituição está assentada em classes ou grupos concretos definidos pela sua situação na sociedade, mas as idéias cumprem um papel fundamental no que se refere à sua coesão.” Em outras palavras, no bloco histórico, há “uma estrutura social – as classes e grupos sociais – que depende diretamente das relações entre as forças produtivas; mas também há uma superestrutura ideológica e política”. (Bignami, s. d.: 27) Gramsci escrevia que, segundo Marx, “uma persuasão popular tem, com freqüência, a mesma energia de uma força material” (Gramsci, 2001,V.1: 238).
Os elementos citados da concepção de bloco histórico permitem perceber o frequente empobrecimento de tal conceito no âmbito dos partidos comunistas, pois esse fenômeno marcou, de uma maneira geral, grande parte do movimento comunista mundial. Nas fileiras do PCB semelhante postura teria como consequência a subestimação pelo trabalho ideológico de formação teórica e política não só dos seus quadros como também de lideranças populares. A incompreensão da necessidade de criar uma força política, ou um bloco histórico contra-hegemônico, capaz de conduzir o processo revolucionário à vitória, condicionou o desarmamento ideológico e político dos comunistas diante do bloco histórico dominante e a inevitável capitulação frente ao reformismo burguês. (Prestes, 2010a)
A partir da IV Conferência Nacional do PCB, realizada em dezembro de 1962, passaria a predominar na direção do Partido, em particular no âmbito da sua Comissão Executiva, a tese de concentrar esforços no combate à política de conciliação com o imperialismo e o latifúndio seguida pelo Governo Goulart e na luta pelas Reformas de Base. Tal posição representava uma primeira vitória da “tendência esquerdizante”, liderada pelos dirigentes Carlos Marighella, Mário Alves e Jover Telles, integrantes da Comissão Executiva Nacional (Falcão, 1993: 221).
Entretanto, inexistia no Brasil a força social e política, unificada por idéias comuns e preparada para viabilizar na prática o rompimento com a política de conciliação e a realização das Reformas de Base. Inexistia no país um poderoso movimento popular unido e organizado - dirigido por lideranças providas de propostas política e ideologicamente definidas e adequadas ao momento -, capaz de golpear as forças reacionárias internas e externas e conquistar o poder. Esta seria a única maneira efetiva de assegurar a realização de reformas, cujo conteúdo iria ferir profundamente os interesses do grande capital nacional e internacional e dos grandes proprietários de terras.
As concepções nacional-libertadoras, presentes tanto na estratégia política do PCB quanto em grande parte do discurso das forças nacionalistas e de esquerda, sob a influência dominante da ideologia nacional-desenvolvimentista, alimentaram as ilusões num hipotético anti-imperialismo da uma suposta burguesia nacional e na possibilidade de, sob a pressão das manifestações das forças nacionalistas e democráticas e, em particular, do movimento sindical, levar o presidente João Goulart a realizar reforma ministerial que permitisse o estabelecimento de um governo nacionalista e democrático e a implementação das Reformas de Base. Cogitava-se ainda de uma reforma constitucional, mesmo que para tal fosse necessário passar por cima do Congresso Nacional.
Com o golpe reacionário de 1964 e a repressão que imediatamente se desencadeou contra as forças democráticas e de esquerda, a situação do PCB se tornou particularmente difícil. O Partido não esperava o golpe e não se havia preparado para enfrentá-lo. Mesmo na Comissão Executiva do Comitê Central, onde predominavam as posições esquerdistas, não haviam sido tomadas medidas para fazer frente à repressão. A maioria esquerdista na Comissão Executiva acreditava que a pressão exercida sobre Jango o faria avançar no caminho da superação da conciliação e da realização das reformas, até mesmo ultrapassando os limites da legalidade constitucional. Os adeptos das posições esquerdistas coincidiam com os adeptos das concepções reformistas ao confiarem, tanto uns quanto os outros, no “esquema militar” de Goulart, abdicando na prática do trabalho de organização, conscientização e mobilização popular.
Diferindo da correlação de forças existente logo após o golpe na Comissão Executiva, nos anos que se seguiram, iria aprofundar-se, no âmbito do Comitê Central do PCB, uma crescente divisão entre a maioria, favorável à manutenção da orientação política inaugurada em 1958 e confirmada no V Congresso, realizado em 1960, e a minoria que se agrupava na chamada “corrente revolucionária”. Esta passaria a defender a adoção imediata da luta armada, uma tática que visava a derrubada da ditadura através da insurreição armada e a instauração de um governo revolucionário, mas a estratégia da revolução nacional e democrática não era questionada. (Marighella, 1979: 49, 58, 63, 104)
O VI Congresso do PCB, realizado no final de 1967, foi um marco na luta contra a vaga esquerdista que ameaçava não só a unidade do Partido quanto sua própria sobrevivência. Uma possível vitória das posições esquerdistas no VI Congresso, com a adoção imediata da luta armada contra a ditadura, teria levado o PCB ao esfacelamento, como aconteceu com os partidos e organizações de esquerda que assim procederam. Como a prática viria a mostrar, inexistiam no Brasil, à época, condições para o desencadeamento de guerrilhas ou de outras formas de luta armada, conforme a vontade de muitos militantes, frustrados com o golpe de 64 e impacientes por transformar seus desejos em realidade.
Prestes percebeu que, naquele momento histórico, era necessário evitar uma segunda derrota, maior ainda que a de abril de 1964, quando se conseguiu impedir o esfacelamento da organização partidária. Tratava-se de somar forças para que, no VI Congresso, as teses dos defensores da deflagração imediata da luta armada fossem rejeitadas. O secretário-geral optou pela conciliação com a maioria reformista para derrotar o inimigo principal naquele momento – o radicalismo de esquerda. Uma vez alcançado tal objetivo, inaugurava-se uma nova etapa da luta ideológica nas fileiras partidárias.
A partir do VI Congresso, as divergências de Prestes com a maioria do Comitê Central do PCB se acentuaram e se tornaram cada vez mais graves. Se o Comitê Central passara a centrar todos seus esforços na luta por um governo antiditatorial, Prestes considerava que “os comunistas ao lutarem pela plataforma comum da frente antiditatorial, não ....[deveriam ocultar]... seu programa revolucionário,(...) fazendo esforços para ganhar para suas posições revolucionárias, para seu programa, as forças fundamentais da revolução”[1]. Fundamentando sua posição, recorria à citação de Lenin:
Só são fortes os lutadores que se apóiam em interesses reais claramente compreendidos de determinadas classes, e todo fator que oculte estes interesses de classe, que desempenham já um papel dominante na sociedade atual, não pode senão enfraquecer os lutadores. (Lenin, Obras Completas, ed. Cartago, tomo II, p. 317; grifos do autor)
A consulta a documentos inéditos de Prestes – pois, ele, em minoria, não podia pronunciar-se abertamente em discordância com o CC – é reveladora do combate por ele travado no âmbito do Comitê Central contra as tendências reformistas de direita, que iriam se acentuando cada vez mais na política do PCB. Eis um exemplo da posição por ele defendida:
Cabe (...) ao Comitê Central decidir se, a pretexto da tática, devemos, em nossa agitação e propaganda, nos referirmos exclusivamente às reivindicações imediatas mobilizadoras das massas, à plataforma unitária da frente única antiditatorial e à luta por um eventual governo das forças antiditatoriais; ou se devemos utilizar a agitação e propaganda igualmente (e, em alguns casos, principalmente), para levar ao conhecimento da classe operária e seus aliados o programa revolucionário (...) de nosso Partido e a necessidade de lutar, independentemente dos compromissos que possamos realizar com as demais forças antiditatoriais, pela conquista de um governo revolucionário, capaz de dar início à aplicação daquele programa. (Idem; grifos do autor)
Na prática, a atividade do PCB ficaria limitada à tática, sendo deixados de lado os objetivos estratégicos do Partido. Com semelhante orientação, a organização e a conscientização dos trabalhadores, assim como a sua formação com vistas à revolução, foram abandonadas. O PCB deixava de distinguir-se das demais forças antiditatoriais, perdia a oportunidade de afirmar-se como organização revolucionária, mantendo a independência ideológica. O PCB enveredava definitivamente pelo caminho do reformismo.
Nos anos 70, com a intensificação da repressão contra o PCB, foi necessário transferir uma parte do Comitê Central (CC) para o exterior do País. A partir de 1975, seria feita a reorganização das atividades do CC na Europa. A correlação de forças no seu interior se definiu no transcorrer dos debates efetuados e das resoluções tomadas a partir do início do seu funcionamento no exterior. Num extremo, estava Prestes, o secretário-geral, apoiado por um pequeno número de dirigentes; seu empenho na defesa das posições que lhe pareciam mais justas e no combate ao reformismo na direção do PCB não o impedia de desenvolver esforços visando manter a unidade do CC e do Partido. No outro extremo estava Armênio Guedes, contando com o apoio de Zuleika Alambert, simpáticos ao eurocomunismo e isolados no âmbito do CC, mas dispondo do controle da redação de Voz Operária e do respaldo da chamada Assessoria do CC, composta por um grupo de intelectuais residentes na Europa e também adeptos do eurocomunismo. No centro, havia o “pântano”[2] – a maioria do CC -, composta por elementos conservadores, acomodados, sem posições definidas, e, por essa razão, aferrados a uma suposta defesa da “linha do VI Congresso” do PCB. Seu objetivo era a manutenção do status-quo, ou seja, dos seus cargos na direção do PCB. Com esse propósito, buscavam a conciliação dos extremos, principalmente a conciliação com Prestes, cuja presença na secretaria-geral constituía um aval importante para a sobrevivência do próprio CC frente ao Partido no Brasil, assim como frente ao PCUS e aos demais partidos comunistas.
As principais divergências entre Prestes e a maioria do CC diziam respeito à definição da estratégia da revolução nacional e democrática, reafirmada no VI Congresso, e à chamada “questão democrática”, ou seja, à posição dos comunistas diante da democracia burguesa. Prestes se convencera de que o caráter da revolução brasileira só poderia ser socialista e que se tornara necessário abandonar a definição estratégica do VI Congresso do PCB. A maioria do CC se recusava a enfrentar essa discussão. Dessas questões derivavam muitas outras; em particular, o tipo de organização partidária necessária para enfrentar tais desafios políticos.
O embate entre a maioria do CC, acomodada e defensora de concepções ultrapassadas, marcadas pelo reformismo de direita, e o pequeno grupo solidário com o secretário-geral assumiu tais proporções que, para Prestes, ficou evidente que se tornara impossível levar aquele CC a transformar-se na direção de um partido efetivamente comprometido com a revolução e os ideais socialistas e comunistas. Chegara a hora de o secretário-geral do PCB romper com a conciliação, deixando de lado a fidelidade a uma falsa unidade, comprometida com o imobilismo, o conservadorismo e, principalmente, com o abandono dos objetivos revolucionários consagrados nos documentos partidários.
Prestes decidira afastar-se da direção do PCB, mas, admitindo ser o principal responsável pela crise deflagrada, considerava necessário ouvir previamente a militância partidária, oportunidade que parecia estar próxima com a anistia, prevista ainda para aquele ano de 1979 e a possibilidade de regresso ao Brasil. Por isso, permaneceu provisoriamente no CC. Sua ruptura com a direção do PCB ficou consagrada na “Carta aos comunistas” de março de 1980, na qual afirmava a necessidade de empreender uma virada drástica em relação à linha política aprovada no VI Congresso do PCB:
É necessário, agora, mais do que nunca, ter a coragem política de reconhecer que a orientação política do PCB está superada e não corresponde à realidade do movimento operário e popular do momento que hoje atravessamos. Estamos atrasados no que diz respeito à análise da realidade brasileira e não temos resposta para os novos e complexos problemas que nos são agora apresentados pela própria vida. (Prestes, L.C., 1980: 12)
Diante de tal situação, qual era a atitude da maioria do Comitê Central do PCB? Em nome de uma suposta unidade partidária, o CC do PCB trilhava o caminho de tentar garantir sua própria sobrevivência a qualquer preço, ou seja, manter o status-quo, recusando-se a realizar as mudanças necessárias tanto no terreno político quanto no da organização partidária. Para Prestes, a política de organização deveria estar sempre associada estreitamente ao caráter da política geral do Partido e subordinada às suas metas revolucionárias. Segundo Prestes, o abandono dos objetivos revolucionários pela direção do PCB a levara a assumir atitudes reformistas e de capitulação diante da burguesia e dos inimigos de classe.
Tendo assumido a responsabilidade principal pelos erros cometidos pelo Partido, Prestes escrevia na “Carta aos comunistas”:
O oportunismo, o carreirismo e compadrismo, a falta de uma justa política de quadros, a falta de princípios e a total ausência de democracia interna no funcionamento da direção, os métodos errados de condução da luta interna, que é transformada em encarniçada luta pessoal, em que as intrigas e calúnias passam a ser a prática corrente da vida partidária adquiriram tais proporções, que me obrigam a denunciar tal situação a todos os comunistas. (Idem:16)
Diante da situação crítica vivida pelo PCB, Prestes apelava a todos os militantes para que tomassem “os destinos do movimento comunista em suas mãos” (idem: 17), mobilizando-se para a conquista da legalidade do Partido e a realização do seu VII Congresso em condições efetivamente democráticas, condenando, ao mesmo tempo, qualquer acordo com a ditadura para a conquista da legalidade. “Compromisso que colocaria o Partido a reboque da burguesia e a serviço da ditadura e inaceitável, portanto, à classe operária e a todos os verdadeiros revolucionários” (idem: 21-22). Compromisso, que, afinal, foi assumido pelo Comitê Central do PCB, após o regresso dos seus membros do exílio.
Em publicação lançada à época pelos colaboradores de Prestes, era apresentada uma súmula das principais divergências entre Prestes e o CC do PCB:
1) Enquanto Prestes se coloca ao lado da classe operária e dá seu apoio aos metalúrgicos em greve, (...) o CC e seu jornal a Voz da Unidade estão contra a greve.
2) Enquanto Prestes considera (...) que a democracia tem sempre um conteúdo de classe determinado (...), o CC e a Voz da Unidade “teorizam” a respeito de uma democracia “pura” e acima das classes (...).
3) Enquanto Prestes (...) considera essencial (...) acumular forças para que se possa chegar à liquidação do regime capitalista e à revolução socialista; as posições do CC (...) convergem no sentido de não questionar a dominação capitalista (...).
4) Enquanto Prestes diz claramente que a ditadura ainda está aí e é necessário derrotá-la (...), o CC do PCB evita referir-se ao regime como a uma ditadura e (...) alguns membros do CC se mostram favoráveis a apertar a “mão estendida” do gen. Figueiredo (...).
5) Enquanto Prestes considera que o centro da atividade dos comunistas deve ser o trabalho de massas (...), o CC do PCB e seu jornal (...) fazem do Parlamento o lugar privilegiado da luta pela democracia.
6) Enquanto Prestes (...) defende a formação de uma ampla frente democrática e, ao mesmo tempo, a unificação das forças de “esquerda” dentro da frente democrática (...), o CC do PCB (...) quer uma frente democrática da qual estejam excluídas as diferentes forças de “esquerda”, (...) na qual os comunistas estejam a reboque da burguesia liberal.
7) Enquanto Prestes considera que “a legalização do PCB terá que ser uma conquista do movimento de massas e de todas as forças realmente democráticas em nosso País”, o CC do PCB revela disposição de aceitar o acordo que lhe vem sendo proposto pela ditadura.
8) Enquanto Prestes mantém uma posição de firme apoio à URSS e a todo o campo socialista, os membros do atual CC têm revelado uma posição cada vez mais clara do que poderia ser chamado de “antissovietismo envergonhado”.
9) Enquanto Prestes está empenhado (...) em fazer uma autocrítica profunda, tanto da política do PCB, como de seus métodos de organização, o CC não mostra a menor disposição à autocrítica e vem intensificando sua atividade terrorista na condução da luta interna (...). [3]
Durante os anos 80, os últimos anos de vida de Prestes, ele não só teve ativa participação na vida política nacional, como dedicou particular atenção à denúncia da continuidade do regime ditatorial no governo do general Figueiredo, assim como à denúncia do que ele chamou de um “poder militar” acima dos poderes da República, inclusive após a eleição indireta de Tancredo Neves e a promulgação da Constituição de 1988. Da mesma forma denunciou com firmeza a capitulação do CC perante o Governo Figueiredo e frente à “transição” à chamada Nova República, dirigida pelas classes dominantes no Brasil.
Devo assinalar que a “Carta aos comunistas” teve grande repercussão e levou numerosos militantes comunistas a tentarem “salvar” o PCB, reorganizá-lo ou estruturar novas organizações em bases verdadeiramente revolucionárias. Intentos estes fracassados e reveladores da inexistência das condições necessárias para a organização imediata de um partido revolucionário, o que foi compreendido por Prestes, levando-o, nos últimos anos de sua vida, a desaconselhar novas tentativas nesse sentido. Durante Encontro Estadual dos comunistas gaúchos que se orientavam pela “Carta aos Comunistas”, realizado em janeiro de 1984, Prestes explicava sua posição, afirmando que “um partido revolucionário só pode surgir de cima para baixo, por intermédio de um grupo ideológico firme, porque é a ideologia que une os comunistas e os distingue de outras forças”. [4]
Na verdade, não era só o PCB que atravessava grave crise. Tratava-se de uma crise do movimento comunista internacional e do chamado “socialismo real”. Crise esta que Prestes havia detectado no PCB uma década antes de a mesma “explodir” no cenário mundial e, ao mesmo tempo, produzir, no Brasil, com a criação do PPS, o desmoronamento do PCB. A “Carta aos comunistas” antecipou questões que viriam a colocar-se, com grande intensidade, para os comunistas no mundo inteiro, uma década mais tarde. Muitas dessas questões mantêm sua atualidade.
Prestes não alimentava ilusões na possibilidade de uma rápida reconstrução do Partido Comunista, que pudesse dar origem a uma organização efetivamente revolucionária. Não alimentava ilusões quanto à rapidez do avanço do movimento revolucionário no Brasil. Em carta a um amigo, ele escrevia:
Tudo indica (...) que marchamos para sério agravamento da situação social. E como não temos um partido revolucionário e as massas trabalhadoras estão desorganizadas, teremos lutas esparsas que serão fatalmente esmagadas pela força das armas. Será este infelizmente o caminho sangrento da revolução brasileira até que, através dele, surja o partido revolucionário, capaz de organizar e unir a classe operária e de levá-la à abertura do caminho para o socialismo em nossa terra. Isto pode parecer muito desalentador e pessimista, mas não é. É realismo de quem tem a certeza de que desse processo surgirá, como necessidade histórica, o verdadeiro partido revolucionário da classe operária. Estamos pagando pelo nosso atraso cultural, pela escravidão de 1888, pela independência com o príncipe da Casa de Bragança, etc. [5]
Termino minha participação neste debate agradecendo a oportunidade que me foi concedida de expor minhas idéias a respeito do reformismo na história do PCB e desculpando-me pela abordagem superficial aqui apresentada, decorrente das limitações impostas ao ter de resumir uma problemática de grande amplitude. Gostaria de informar a todos os presentes que as questões hoje aqui abordadas, estão detalhadamente apresentadas e amplamente documentadas em livro que estarei lançando nos próximos meses, intitulado Luiz Carlos Prestes: o combate por um partido revolucionário (1958-1990).
Alguns dos documentos aqui citados estão reproduzidos no “sítio” do Instituto Luiz Carlos Prestes (http://www.ilcp.org.br/).
NOTAS
[1]ALMEIDA, Antônio (pseudônimo de Prestes), documento original datilografado, sem título, 23 pgs, 08/04/1969, (Arquivo particular da autora); cópia em Coleção Luiz Carlos Prestes, Arquivo Edgard Leuenroth/UNICAMP, pasta 009.
[2]“Pântano” – expressão empregada por Lenin, que escrevia: “Praticamente não há partido político com luta interna que prescinda desse termo, que serve sempre para designar os elementos inconstantes que vacilam entre os que lutam.” (LENIN,V.I. Obras escogidas en tres tomos. Moscú, Ed. Progreso, 1961, v. 1, p. 296 (nota).
[3] Ecos à Carta de Prestes, n. 2, maio/1980; grifos do texto.
[4] PRESTES, Luiz Carlos, “Declarações” (transcrição não revista) em “Resoluções Políticas do 3º Encontro Estadual dos comunistas gaúchos que se orientam pela Carta aos comunistas do camarada Luiz Carlos Prestes” (janeiro/1984), documento datilografado (cópia xerox), 28 pgs. “Coleção Luiz Carlos Prestes” no Arquivo Edgard Leuenroth/UNICAMP, Manuscritos, PCB-CC, pasta 242; “Documento do PCML – Partido Comunista Marxista Leninista”, 28 folhas, janeiro/1984, “Informes dos Órgãos de Segurança sobre Luiz Carlos Prestes” (Confidencial).
[5] PRESTES, Luiz Carlos. “Carta à Aloyzio Neiva Filho”, Rio, 16/01/1983, 3 pgs.;documento original, datilografado. (Arquivo particular da autora)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIGNAMI, Ariel. El pensamiento de Gramsci: una introduccion. 2a ed. Buenos Aires, Editorial El Folleto, s.d.
FALCÃO, João. Giocondo Dias, a vida de um revolucionário (meio século de história política do Brasil). Rio de Janeiro, Agir, 1993.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Volume 1. 2a ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Volume 1. 2a ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
HOBSBAWM, Eric J. “Nacionalismo e marxismo”. In: Jaime Pinsky (org.). Questão nacional e marxismo. São Paulo, Ed. Brasiliense, p. 294-323, 1980.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Escritos fundamentales. Buenos Aires, Acercándonos Ediciones, 2008.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Escritos fundamentales. Buenos Aires, Acercándonos Ediciones, 2008.
MARIGHELLA, Carlos. Escritos de Carlos Marighella. S.P., Ed. Livramento, 1979.
PCB: vinte anos de política (1958-1979) (documentos). São Paulo, LECH – Livraria Editora Ciências Humanas, 1980.
PRESTES, Anita Leocadia. “A que herança devem os comunistas renunciar?”. Oitenta, Porto Alegre, LP&M, nº 4, 1980, p.197-223.
PRESTES, Anita Leocadia. Os comunistas brasileiros (1945-1956/58): Luiz Carlos Prestes e a política do PCB. São Paulo, Ed. Brasiliense, 2010.
PRESTES, Anita Leocadia, “Antônio Gramsci e o ofício do historiador comprometido com as lutas populares”, Revista de História Comparada, Volume 4, nº 3, , p.6–18, Dezembro/2010a.
PRESTES, Luiz Carlos. Carta aos comunistas. São Paulo, Ed. Alfa-Omega, 1980.
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FONTE: Instituto Luiz Carlos Prestes
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FONTE: Instituto Luiz Carlos Prestes
domingo, 25 de março de 2012
PCB: 90 anos de muita história
Por Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro
Não há como analisar a história política do Brasil republicano sem levar em conta a importância da trajetória da esquerda brasileira, entre outros aspectos, do seu papel na construção da democracia e no aprofundamento das noções de cidadania, da sua relação com os movimentos sociais e, mais recentemente, na relação conteúdo programático e experiência de governo. A rigor, no Brasil, temos um conjunto de tradições diversificadas no campo da esquerda: anarquistas, socialistas, trotskistas e vários outros movimentos de esquerda em nosso país. Não se pode negar, porém, a hegemonia desfrutada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) na representação dos trabalhadores e nos setores de esquerda, ao longo de boa parte do século XX.
O PCB, fundado em 1922, teve atuação significativa em vários momentos da história contemporânea do país. Para citar alguns exemplos, o Bloco Operário e Camponês (BOC) em 1928/30, o movimento antifascista e a Aliança Nacional Libertadora em 1934/35, a política de União Nacional em 1938/45, a luta pela criação da Petrobrás e a defesa das riquezas naturais da cobiça imperialista nos anos cinqüenta e no combate pela democracia e contra a ditadura militar, implantada em 1964.
Os comunistas brasileiros não se transformaram em heróis todo-poderosos, muito menos em vítimas das circunstâncias. Através da sua ação, em que consciência e vontade aparecem como fatores decisivos na transformação do real, eles atuaram nas condições históricas existentes em cada momento vivenciado. Não obstante seus êxitos e fracassos, como lembra o poeta Ferreira Gullar, “quem contar a história de nosso povo e seus heróis tem que falar dele [o PCB], ou estará mentindo”.
Política no fim do mundo
Livro bíblico do Apocalipse reflete brigas internas entre seguidores de Jesus de origem judaica e os de origem pagã, afirma pesquisadora americana
REINALDO JOSÉ LOPES
EDITOR DE “CIÊNCIA E SAÚDE”
Para desapontamento dos que gostam de especulações proféticas, o livro bíblico do Apocalipse não traz previsões detalhadas sobre Barack Obama ou o governo Dilma.
Segundo uma especialista americana, o autor da obra estava com a cabeça num problema bem mais próximo de sua época: os começos da briga entre judeus e cristãos.
Para a historiadora Elaine Pagels, o mais correto é dizer que o escritor, cujo nome é João (mas quase certamente não tem nada a ver com o apóstolo desse nome), via a si mesmo do lado judaico dessa disputa. Para ele, os verdadeiros seguidores de Jesus estavam dentro do judaísmo.
Pagels expõe em detalhes sua interpretação sobre a obra que encerra a Bíblia em "Revelations" (trocadilho com "Revelation", nome mais usado para o Apocalipse em inglês). O livro da pesquisadora da Universidade de Princeton acaba de ser lançado nos Estados Unidos.
Há tempos os estudiosos do Novo Testamento perceberam o caráter fortemente judaico do Apocalipse.
Para ser mais específico, muitos acreditam que as batalhas e atrocidades descritas na obra são, em parte, autobiográficas. O autor teria nascido na Palestina e vivido os horrores da Grande Revolta Judaica (por volta do ano 70 d.C.), quando guerrilheiros judeus se levantaram contra Roma -e perderam feio.
"Há a referência à destruição do Templo de Jerusalém pelos pagãos no capítulo 11, por exemplo", lembra Paulo Augusto de Souza Nogueira, especialista em literatura apocalíptica da Universidade Metodista de São Paulo.
Além disso, o grego do Apocalipse não se parece muito com algo saído da boca de um filósofo ateniense. Parece ter sido fortemente influenciado pelo hebraico e pelo aramaico, sugerindo que seu autor não era falante nativo do grego.
"Ele diz, por exemplo, 'uma grande voz' ou 'uma voz de trovão', quando haveria modos de dizer 'uma voz forte' em grego", diz Nogueira.
CONTRA PAULO
Pagels vai além. Ela propõe que, após sair da Palestina e ir para a Ásia Menor (atual Turquia) depois da queda de Jerusalém, o autor do Apocalipse entrou em contato com cristãos de origem pagã -e não gostou nada do que viu.
Seriam membros de igrejas fundadas pelo apóstolo Paulo, que também era judeu, mas tinha uma visão menos rígida sobre a necessidade de seguir os preceitos do judaísmo caso a pessoa desejasse acreditar em Jesus.
Paulo, por exemplo, achava até admissível que os pagãos convertidos comessem carne de animais sacrificados aos deuses romanos. Para o autor do Apocalipse, isso seria quase o mesmo que fazer um pacto com o Diabo.
E Paulo não odiava Roma -ao contrário de João, cujos monstros míticos, como a famosa "Besta" (a do número 666) são representações disfarçadas do poder romano e de imperadores como Nero.
Para Pagels, João reserva alguns de seus termos mais duros -como "sinagoga de Satanás"- para cristãos de origem pagã que toleravam o consumo de carne sacrificada aos ídolos e se viam como o "novo Israel" -daí a referência a uma sinagoga.
"Isso é comum na literatura apocalíptica. A crítica mira tanto o inimigo externo quanto membros do grupo do autor com os quais ele não concorda", diz Nogueira.
"REVELATIONS"
AUTORA Elaine Pagels
EDITORA Viking Adult
QUANTO US$ 15,81
CLASSIFICAÇÃO bom
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TRUPE DO ARMAGGEDON
Entenda algumas referências veladas no livro do Apocalipse
TRONO DE SATANÁS
É assim que João, o autor do livro, refere-se à cidade de Pérgamo, na atual Turquia. O local tinha um grande templo dedicado ao deus pagão Zeus
CABEÇA RESSUSCITADA
O texto também diz que uma das cabeças da besta parecia ter sido morta por um golpe de espada, mas voltou a viver. É outra possível referência a Nero, morto por um de seus empregados, mas em torno do qual surgiu a lenda de que ele retornaria para reinar
PROSTITUTA DA BABILÔNIA
Uma das vilãs do livro, é uma personificação de Roma, estando sentada em cima de um monstro com sete cabeças (as sete colinas sobre as quais Roma foi construída)
666
O famoso "número da besta" equivale à soma do valor numérico das letras hebraicas do nome "Nero César" (cada letra hebraica tinha um valor tradicional como número). O imperador Nero (37 d.C.-68 d.C.) foi grande perseguidor dos seguidores de Jesus
616?
Curiosamente, alguns dos manuscritos gregos mais antigos têm o número 616, e não o 666
FONTE: Folha de São Paulo, 25 de março de 2012.
sexta-feira, 23 de março de 2012
Ou o Brasil acaba com a saúva…
Por Izaías Almada.
O ditado ficou famoso no Brasil durante muitos anos: ou o Brasil acabava com a saúva ou a saúva acabava com o Brasil. A praga destruía terras e lavouras, dificultando o plantio e o progresso de muitos agricultores. Não raro, a imagem metaforizava-se e era usada, como faço agora, para indicar outros eventuais inimigos das terras brasileiras.
Muito embora na democracia representativa formal, essa que cinicamente dizem ser ‘o governo do povo, pelo povo e para o povo’, os partidos políticos organizados nunca representam a 100%, do ponto de vista ideológico e programático, aquilo que dizem ou que gostariam de representar dos extratos sociais que os apoiam. Ainda assim será possível afirmar com alguma segurança que até o golpe civil/militar de 1964, o quadro político partidário brasileiro apresentava alguma coerência na representatividade dos partidos políticos até então existentes.
PSD, UDN, PTB e outros menos votados como o PSP, o PDC e, sobretudo o PCB (dentro ou fora da legalidade) abrigavam em suas fileiras homens e mulheres que se identificavam com o pensamento menos ou mais conservador, com o fascismo ou com o comunismo ou o socialismo cristão ou ateu, o trabalhismo e por aí afora.
A partir de 1964, com o fechamento do Congresso e a dissolução dos partidos legalmente constituídos o país se dividiu entre os incentivadores e apoiantes da ditadura, os que tentaram resistir ao arbítrio e os indiferentes, estes sempre em maior número, infelizmente.
Os vinte e um anos de ditadura e o retorno a uma nova fase democrática, sustentada por interesses não muito claros sobre o que fazer após o período discricionário, acabaram por condenar o país ao registro de dezenas de partidos políticos, muitos deles sem qualquer representatividade. Convocou-se uma Assembleia Constituinte que deu ao Brasil sua nova Constituição com mais de 500 artigos, o que bem demonstra a colcha de retalhos a que se conseguiu chegar. Uma democracia com 500 artigos constitucionais e centenas de Medidas Provisórias com o passar dos anos. Imaginem uma democracia que se rege por MEDIDAS PROVISÓRIAS.
Partidos que se formam ao abrigo de interesses de grupos ou de personalidades discutíveis da nossa fauna de aventureiros, muitos deles incentivados pela impunidade, pelo apadrinhamento de caciques políticos e pelos “foros privilegiados” de pessoas protegidas pelos cargos eletivos e votos conquistados nas urnas. Partidos dos quais o cidadão comum mal conhece os programas. Partidos cuja teoria e a prática são separadas por um abismo de incompetência, falta de planejamento estratégico de uma política para o país e que, quando conseguida, se deve ao esforço e a dedicação de alguns de seus militantes mais atentos e audaciosos, para o bem e para o mal.
A ruptura ideológica provocada na esquerda a partir dos anos 1980, entre outros fatores, pela ascensão e imposição do neoliberalismo econômico, a queda do muro de Berlim e do leste europeu, o vertiginoso crescimento chinês e seu híbrido sistema capitalista/socialista, o desejo da América Latina em se livrar definitivamente do atraso e de suas oligarquias conservadoras, o fortalecimento dos BRICS, a chantagem nuclear e a ganância sobre o petróleo do Oriente Médio, o descaso com o continente africano, os bolsões mediáticos conservadores e fascistas espalhados pelo mundo, o fanatismo religioso – e poderíamos citar mais alguns – desestabilizou em todo o mundo a busca pela alternativa socialista.
O espírito da concórdia e da anistia política substituiu, entre nós, o desejo de justiça. Somos um país bonzinho ao invés de justo. Batemos em dependentes químicos dentro e fora da Universidade, nos bairros periféricos das grandes cidades e evitamos a prisão de banqueiros e empresários corruptos.
Só vamos às ruas para os desfiles de escolas de samba e para comemorarmos os campeonatos conquistados por nossos times de futebol. Ou o Brasil combate com eficácia a corrupção e a impunidade ou essas acabarão de vez com o país.
***
Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968.
FONTE: Blog da Boitempo
quinta-feira, 22 de março de 2012
O direito pela água como princípio da soberania alimentar
Confira "Declaração da Via Campesina Internacional sobre a questão da água", depois de reunião no Fórum Alternativo Mundial da Água, realizado na França, entre os dias 12 e 17 de março.
"Reivindicamos que o direito pela água seja respeitado, dentro do princípio regulador da soberania alimentar. O direito à água é o respeito permanente ao ciclo da água, tomado integralmente. Afirmamos que a privatização e a mercantilização da água e de todo outro bem comum (sementes, terra, conhecimentos locais e tradicionais, etc.) são um crime contra a terra e a humanidade", defende a Via Campesina.
Declaração da Via Campesina no Fórum Alternativo Mundial da Água
Nós, organizações camponesas de diferentes países do mundo, membros da Via Campesina, reunidos de 12 a 17 de março de 2012, no Fórum Alternativo Mundial da Água, em Marselha, França, representados por delegados vindos da Turquia, Brasil, Bangladesh, Madagascar, Portugal, Itália, França e México, expressamos a nossa solidariedade aos afetados por catástrofes ambientais e, especialmente, aos que são vítimas da construção de represas, dos gases de xisto, da apropriação, da mercantilização e da escassez da água, das contaminações generalizadas, das repressões e dos assassinatos levados à prática contra os militantes defensores da água.
Reivindicamos que o direito pela água seja respeitado, dentro do princípio regulador da soberania alimentar. O direito à água é o respeito permanente ao ciclo da água, tomado integralmente. Afirmamos que a privatização e a mercantilização da água e de todo outro bem comum (sementes, terra, conhecimentos locais e tradicionais, etc.) são um crime contra a terra e a humanidade. Os grandes projetos de represas e de centrais hidroelétricas aprisionam e se apropriam da água, não tendo em conta nem necessidades, nem práticas tradicionais, nem a opinião das comunidades locais, além de debocharem da preservação do ecossistema.
As crises da água, da biodiversidade, as crises sociais, energéticas e financeiras encontram-se todas juntas e são as consequências do neoliberalismo e do modelo de agricultura industrial promovido pelas instituições financeiras internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio), os tratados de livre comércio, o Conselho Mundial da Água, as multinacionais e a maioria dos governos.
A economia verde é uma falsa solução frente às mudanças climáticas e à escassez da água. A mercantilização da água, do carvão, da biodiversidade, os OGM, as nanotecnologias e a geoengenharia são as novas saídas e propostas do neoliberalismo para responder às crises. A evasão crescente continua enquanto estas respostas tecnicistas e mercantis são as principais responsáveis pelo caos ecológico e social que nos atinge.
O modelo de produção industrial, as monoculturas e a agroquímica têm contaminado nossas águas, pondo em perigo nossa saúde. Defendemos as práticas agroecológicas e a agricultura camponesa, que levam à prática a soberania alimentar e contribuem com a preservação e a utilização sustentável da água.
A água é um bem comum em benefício de todos os seres vivos, e deve ser submetida a um gerenciamento público, democrático, local e sustentável. Os conhecimentos locais e tradicionais de gerenciamento da água, que protegem e consideram o ecossistema em sua totalidade, existem desde sempre. Eles são testemunhas atemporais de sua eficácia. As políticas públicas e as leis sobre a água devem reconhecer e respeitar esses conhecimentos.
Pela soberania alimentar: Parem com a apropriação da água!
Via Campesina
Marseille, França, 18 de Março de 2012.
FONTE: Página do MST
Claramente a favor do aborto
Por Vladimir Safatle.*
Há algum tempo, a política brasileira tem sido periodicamente chantageada pela questão do aborto. Tal chantagem demonstra a força de certos grupos religiosos na determinação do ordenamento jurídico brasileiro, o que evidencia como a separação entre Igreja e Estado está longe de ser uma realidade efetiva entre nós. Uma das expressões mais claras dessa força encontra-se no fato de mesmo os defensores do aborto não terem coragem de dizer isso com todas as letras.
Sempre somos obrigados a ouvir afirmações envergonhadas do tipo: “Eu, pessoalmente, sou contra, afinal, como alguém pode ser a favor do aborto? Mas esta é uma questão de saúde pública, devemos analisá-la de maneira desapaixonada…”
Talvez tenha chegado o momento de dizermos: somos sim absolutamente a favor do aborto. Há aqui uma razão fundamental: não há Estado que tenha o direito de legislar sobre o uso que uma mulher deve fazer de seu próprio corpo. É estranho ver algumas peculiaridades brasileiras. Por exemplo, o Brasil deve ser um dos poucos países onde os autoproclamados liberais e defensores da liberdade do indivíduo acham normal que o Estado se arrogue o direito de intervir em questões vinculadas à maneira como uma mulher dispõe de seu próprio corpo.
Há duas décadas, a artista norte-americana Barbara Kruger concebera um cartaz onde se via um rosto feminino e a frase: “Seu corpo é um campo de batalha” [ilustração acima]. Não poderia haver frase mais justa a respeito da maneira com que o poder na contemporaneidade se mostra em sua verdadeira natureza quando aparece como modo de administração dos corpos e de regulação da vida. Esta é a função mais elementar do poder: fazer com que sua presença seja percebida sempre que o indivíduo olhar o próprio corpo.
Nesse sentido, não deixa de ser irônico notar como alguns setores do cristianismo, como o catolicismo e algumas seitas pentecostais, parecem muito mais preocupados com o corpo de seus fiéis que com sua alma. Daí a maneira como transformaram, a despeito de outros segmentos do cristianismo, problemas como o aborto, a sexualidade e o casamento homossexual em verdadeiros objetos de cruzadas. Talvez seria interessante lembrar: mesmo entre os cristão tais ideias são controversas. Os anglicanos não veem o aborto como um pecado e mesmo entre os luteranos, embora se digam contrários, ninguém pensaria em excomungar uma fiel por ela ter decido fazer um aborto.
É claro que se pode sempre contra-argumentar dizendo que problemas como o aborto não podem ser vistos exclusivamente como uma questão ligada à autonomia a que tenho direito quando uso meu corpo. Pois haveria outra vida a ser reconhecida enquanto tal. Esse ponto está entre os mais inacreditáveis obscurantismos.
Uma vida em potencial não pode, em hipótese alguma, ser equiparada juridicamente a uma vida em ato. Um embrião do tamanho de um grão de feijão, sem autonomia alguma, parasita das funções vitais do corpo que o hospeda e sem a menor atividade cerebral não pode ser equiparado a um indivíduo dotado de autonomia das suas funções vitais e atividade cerebral. Não estamos diante do mesmo fenômeno. A maneira com que certos grupos políticos e religiosos se utilizam do conceito de “vida” para unificar os dois fenômenos (dizendo que estamos diante da mesma “vida humana”) é apenas uma armadilha ideo-lógica. A vida humana não é um conceito biológico, mas um conceito político no qual encontramos a sedimentação de valores e normas que nossa vida social compreende como fundamentais. Se dizemos que alguém desprovido de atividade cerebral está clinicamente morto, mesmo se ele conservar grande parte de suas funções vitais ainda em atividade graças a aparelhos médicos, é porque autonomia e autocontrole são valores fundamentais para nossa concepção de vida humana.
Assim, quando certos setores querem transformar o debate sobre o aborto em uma luta entre os defensores incondicionais da vida e os adeptos de alguma obscura cultura da morte, vemos a mais primária tentativa de transformar a vida em um conceito ideológico. Isso se admitirmos que será necessariamente ideológico um discurso que quer nos fazer acreditar que “as coisas falam por si mesmas”, que nossa definição de vida é algo assentado nas leis cristalinas da natureza, que ela não é uma construção baseada em valores sociais reificados.
Levando isso em conta, temos de saudar o fato de alguns arautos do conservadorismo pretenderem colocar tal questão na pauta do debate político brasileiro e esperar que existam algumas pessoas dispostas a compreender a importância do que está em jogo. Desativar as molas do poder passa pela capacidade de colocá-lo a uma distância segura de nossos corpos.
* Artigo publicado originalmente na revista Carta Capital.
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP, bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), professor visitante das Universidades de Paris VII e Paris VIII, professor-bolsista no programa Erasmus Mundus.