Aos 92 anos, o historiador britânico Eric Hobsbawm continua um feroz crítico da prevalência do modelo político-econômico dos EUA. Para ele, o presidente americano Barack Obama, ao lidar com as consequências da crise econômica, desperdiçou a chance de construir maneiras mais eficazes de superá-la.
“Podemos desejar sucesso a Obama, mas acho que as perspectivas não são tremendamente encorajadoras”, diz, na entrevista abaixo. “A tentativa dos EUA de exercer a hegemonia global vem fracassando de modo muito visível.”
Hobsbawm discute ainda questões globais contemporâneas –como as tentativas de criar Estados supranacionais, a xenofobia e o crescimento econômico chinês– à luz do que expressou em livros como “Era dos Extremos” e “Tempos Interessantes” (ambos publicados pela Cia. das Letras).
Pergunta – “Era dos Extremos” termina em 1991, com um panorama de avalanche global –o colapso das esperanças de avanços sociais globais da era de ouro [segundo Hobsbawm, 1949-73]. Quais são as mudanças mais importantes desde então na história mundial?
Eric Hobsbawm – Vejo quatro mudanças principais. Primeiro, o deslocamento do centro econômico do mundo do Atlântico Norte para o sul e o leste da Ásia. Isso já estava começando no Japão nas décadas de 1970 e 80, mas a ascensão da China desde os anos 1990 vem fazendo uma diferença real.
Em segundo lugar, é claro, a crise mundial do capitalismo, que vínhamos prevendo, mas que, mesmo assim, levou muito tempo para ocorrer. Em terceiro, a derrota retumbante da tentativa dos EUA de exercer a hegemonia global solo a partir de 2001 –e essa tentativa vem fracassando de modo muito visível.
Em quarto lugar, a emergência de um novo bloco de países em desenvolvimento, como entidade política –os Brics [Brasil, Rússia, Índia e China]–, não tinha acontecido quando escrevi “Era dos Extremos”. E, em quinto lugar, a erosão e o enfraquecimento sistemático da autoridade dos Estados: dos Estados nacionais no interior de seus territórios e, em grandes regiões do mundo, de qualquer tipo de autoridade de Estado efetiva. Isso pode ter sido previsível, mas se acelerou em um grau que eu não teria previsto.
Pergunta – O que mais o surpreendeu desde então?
Hobsbawm – Nunca deixo de me espantar com a pura e simples insensatez do projeto neoconservador, que não apenas fez de conta que a América fosse o futuro, mas chegou a pensar que tivesse formulado uma estratégia e uma tática para alcançar esse objetivo. Pelo que consigo enxergar, eles não tinham uma estratégia coerente, em termos racionais.
Em segundo lugar –fato muito menor, mas significativo–, o ressurgimento da pirataria, algo que já tínhamos em grande medida esquecido; isso é novo. E a terceira coisa, que é ainda mais local: a derrocada do Partido Comunista da Índia (Marxista) em Bengala Ocidental [no leste da Índia], algo que eu realmente não teria previsto.
Prakash Karat, seu secretário-geral, disse-me recentemente que o partido se sentiu sitiado e assediado em Bengala Ocidental. E está prevendo sair-se muito mal diante deste novo Congresso nas eleições locais. Isso depois de governar por 30 anos como partido nacional, por assim dizer.
Pergunta – O sr. visualiza qualquer recomposição política do que foi no passado a classe trabalhadora?
Hobsbawm – Não em sua forma tradicional. Marx [1818-83] acertou, sem dúvida, quando previu a formação de grandes partidos de classe em determinado estágio da industrialização. Mas esses partidos, quando foram bem-sucedidos, não operaram puramente como partidos da classe trabalhadora: se queriam estender-se para além de uma classe estreita, o faziam como partidos do povo, estruturados em torno de uma organização inventada pela classe trabalhadora e voltada a alcançar os objetivos dela.
Mesmo assim, havia limites à consciência de classe. No Reino Unido, o Partido Trabalhista nunca conquistou mais de 50% dos votos. O mesmo se aplica à Itália, onde o Partido Comunista era muito mais um partido do povo. Na França, a esquerda era baseada sobre uma classe trabalhadora relativamente fraca, mas que conseguiu se reforçar como sucessora essencial da tradição revolucionária.
O declínio da classe operária manual na indústria parece, de fato, ter atingido seu estágio terminal. Ainda restam ou vão restar muitas pessoas fazendo trabalhos manuais, e a defesa das condições de trabalho delas continua a ser uma tarefa importante de todos os governos de esquerda. Mas essa defesa não pode mais ser o alicerce principal das esperanças dessas pessoas: elas não possuem mais potencial político, nem mesmo teoricamente, porque não possuem o potencial de organização da classe operária antiga.
Houve três outras mudanças negativas importantes. Uma delas, é claro, é a xenofobia –que, para a maior parte da classe trabalhadora é, nas palavras usadas certa vez por [August] Bebel, “o socialismo dos tolos”: proteja meu emprego contra pessoas que estão competindo comigo.
Em segundo lugar, boa parte da mão de obra e do trabalho nos setores que a administração pública britânica qualificava no passado como “graus menores e manipulativos” não é permanente, mas temporária: são estudantes e migrantes trabalhando com catering [fornecimento de refeições para linhas aéreas, gastronomia hospitalar e cozinhas de navios], por exemplo. Assim, não é fácil enxergá-la como tendo potencial de ser organizada.
A única parte facilmente organizável desse tipo de mão de obra é a que é empregada por autoridades públicas, e isso devido ao fato de essas autoridades serem politicamente vulneráveis.
A terceira e mais importante mudança é, a meu ver, a divisão crescente gerada por um novo critério de classe: a saber, a aprovação em exames de escolas e universidades como critério de acesso a empregos. Pode-se dizer que se trata de uma meritocracia, mas ela é medida, institucionalizada e mediada por sistemas de ensino.
O que isso fez foi desviar a consciência de classe da oposição aos patrões para a oposição a representantes de alguma elite: intelectuais, elites liberais, pessoas que se erguem como superiores a nós.
Podem existir meios novos? Não podem mais ser em termos de uma classe única, mas, na minha opinião, isso nunca foi possível. Existe uma política progressista de coalizões, mesmo coalizões relativamente permanentes como as que unem, digamos, a classe média instruída, leitora do “The Guardian”, e os intelectuais –os altamente instruídos, que de modo geral tendem a posicionar-se muito mais à esquerda que outros– e a massa dos pobres e ignorantes.
Os dois grupos são essenciais para um movimento como esse, mas hoje talvez seja mais difícil uni-los do que era antes. É possível, em certo sentido, os pobres se identificarem com os multimilionários, como acontece nos EUA, dizendo “eu só precisaria de sorte para virar popstar”. Mas não é possível dizer “bastaria um pouco de sorte para eu virar ganhador do Prêmio Nobel”. Isso cria um problema real quando se trata de coordenar as posições políticas de pessoas que, objetivamente falando, poderiam estar do mesmo lado.
Pergunta – Que comparações o sr. traçaria entre a crise atual e a Grande Depressão?
Hobsbawm -[A crise de] 1929 não começou com os bancos –eles só caíram dois anos mais tarde. O que aconteceu, na verdade, foi que a Bolsa de Valores [de Nova York] desencadeou uma queda na produção, com um índice muito mais alto de desemprego e um declínio real muito maior na produção do que havia ocorrido em qualquer momento até então.
A depressão atual levou mais tempo sendo preparada que a de 1929, que pegou quase todos de surpresa. Deveria ter sido claro desde cedo que o fundamentalismo neoliberal gerou uma instabilidade enorme nas operações do capitalismo. Até 2008, isso pareceu afetar apenas as áreas periféricas –a América Latina nos anos 1990 e no início da década de 2000, o Sudeste Asiático e a Rússia.
Parece-me que o verdadeiro indício de algo grave acontecendo deveria ter sido o colapso da Long-Term Capital Management [fundo de investimentos sediado nos EUA], em 1998, que provou como estava errado o modelo inteiro de crescimento. Mas o incidente não foi visto como tal. Paradoxalmente, a crise levou vários empresários e jornalistas a redescobrirem Karl Marx como alguém que tinha escrito algo interessante sobre uma economia globalizada moderna. Não teve absolutamente nada a ver com a antiga esquerda.
A economia mundial em 1929 era menos global do que é hoje. Isso exerceu algum efeito, é claro –por exemplo, teria sido muito mais fácil então para as pessoas que perderam seus empregos retornarem a suas cidadezinhas de origem.
A existência da União Soviética não exerceu efeito concreto sobre a Depressão, mas seu efeito ideológico foi enorme: significava que havia uma alternativa. Desde os anos 1990, temos assistido à ascensão da China e das economias emergentes, fato que vem realmente exercendo um efeito concreto sobre a depressão atual, na medida em que esses países vêm ajudando a manter a economia mundial muito mais equilibrada do que ela estaria sem eles.
Na verdade, mesmo na época em que o neoliberalismo estava supostamente em plena forma, o crescimento real estava ocorrendo em muito grande medida nessas economias em desenvolvimento recente –particularmente na China. Tenho certeza de que, não fosse pela China, a queda de 2008 teria sido muito mais séria.
Pergunta – E o que dizer das consequências políticas?
Hobsbawm – A Depressão de 1929 levou a um desvio avassalador para a direita, com a exceção notável da América do Norte, incluindo o México, e da Escandinávia. Na França, a Frente Popular teve apenas 0,5% mais votos em 1936 do que tinha em 1932, de modo que sua vitória assinalou uma mudança na composição das alianças políticas, e não alguma coisa mais profunda. Na Espanha, apesar da situação quase ou potencialmente revolucionária, o efeito imediato e, de fato, também o efeito de longo prazo foi um desvio para a direita.
Na maioria dos outros países, especialmente na Europa central e do leste, a política se desviou para a direita de modo muito acentuado.
O efeito da crise atual não é tão nítido. Podemos imaginar que grandes mudanças políticas devem ocorrer não apenas nos EUA ou no Ocidente, mas quase certamente na China. Mas podemos apenas especular sobre quais serão essas mudanças.
Pergunta – O sr. antevê que a China continue a resistir ao declínio?
Hobsbawm – Não há nenhuma razão em especial para prever que a China pare de crescer de uma hora para outra. A depressão causou um choque grave ao governo chinês, na medida em que paralisou muitas indústrias, temporariamente. Mas o país ainda se encontra nos estágios iniciais do desenvolvimento econômico, e há espaço enorme para expansão.
Não quero tecer especulações sobre o futuro, mas podemos imaginar que, dentro de 20 ou 30 anos, a importância relativa da China no palco mundial será maior do que é hoje –pelo menos econômica e politicamente, mas não necessariamente em termos militares. É claro que o país ainda enfrenta problemas enormes; sempre há pessoas que se perguntam se a China vai conseguir continuar unida. Mas acho que as razões reais e ideológicas para que as pessoas desejem que a China se mantenha unida continuam muito fortes.
Pergunta – Que avaliação o sr. faz da administração [do presidente dos EUA, Barack] Obama?
Hobsbawm – As pessoas ficaram tão satisfeitas com a eleição de um homem como ele, especialmente em um momento de crise, que pensaram que certamente seria um grande reformador, que faria o que Roosevelt [presidente dos EUA, 1933-45, responsável pelo New Deal, série de programas econômicos e sociais contra a Grande Depressão] fez.
Mas Obama não o fez. Ele começou mal. Se compararmos os primeiros cem dias de Roosevelt com os primeiros cem dias de Obama, o que salta à vista é a disposição de Roosevelt em aceitar assessores não oficiais, em experimentar algo novo, comparada à insistência de Obama em se conservar no centro. Acho que ele desperdiçou sua chance.
Podemos desejar sucesso a Obama, mas acho que as perspectivas não são tremendamente encorajadoras.
Pergunta – Voltando-nos ao teatro mais explosivo de conflito internacional no mundo no presente, o sr. pensa que a solução de dois Estados, conforme visualizada no momento, é uma perspectiva digna de crédito para a Palestina?
Hobsbawm – Pessoalmente, duvido que ela exista neste momento. Seja qual for a solução possível, nada vai acontecer enquanto os americanos não decidirem mudar totalmente de posição e aplicar pressão sobre Israel.
Pergunta – Existem lugares do mundo nos quais o sr. acha que projetos positivos e progressistas ainda estejam vivos ou tenham chances de ser reativados?
Hobsbawm – Na América Latina, com certeza, a política e o discurso público geral ainda são conduzidos nos velhos termos do iluminismo –liberais, socialistas, comunistas. Esses são os lugares onde se encontram militaristas que falam como socialistas –que são socialistas. Encontram-se fenômenos como [o presidente] Lula, baseado em um movimento da classe trabalhadora, e [o presidente boliviano Evo] Morales.
Para onde isso vai levar é outra questão, mas a velha linguagem ainda pode ser falada, e os velhos modos políticos ainda estão disponíveis. Não estou inteiramente certo quanto à América Central, embora existam indícios de um ligeiro “revival” da tradição da revolução no próprio México –não que isso vá muito longe, na medida em que o México já foi virtualmente integrado à economia americana.
Acho que a América Latina se beneficiou da ausência de nacionalismo étnico-linguístico e de divisões religiosas, e isso fez com que fosse muito mais fácil conservar o discurso antigo. Sempre chamou minha atenção o fato de que, até muito recentemente, não se viam sinais de política étnica. Esta apareceu entre movimentos indígenas no México e no Peru, mas não em escala remotamente comparável ao que se viu na Europa, na Ásia ou na África.
É possível que projetos progressistas possam renascer na Índia, devido à força institucional da tradição secular de Nehru [que se tornou premiê da Índia após a independência do país, em 1947]. Mas isso não parece penetrar muito entre as massas, com a exceção de algumas regiões em que os comunistas têm tido ou tiveram apoio de massa, como em Bengala e Kerala, e possivelmente alguns grupos como os naxalitas ou os maoístas no Nepal.
Além disso, o legado dos velhos movimentos trabalhistas, socialistas e comunistas na Europa continua bastante forte. Os partidos fundados sob [a influência de Friedrich] Engels ainda são, em quase toda parte na Europa, potenciais partidos governistas ou os principais partidos de oposição. Desconfio que em algum momento a herança do comunismo, por exemplo nos Bálcãs ou até mesmo em parte da Rússia, possa se manifestar de maneiras que não podemos prever.
O que vai acontecer na China eu não sei. Mas não há dúvida de que eles estão pensando em termos diferentes, não em termos maoístas ou marxistas modificados.
Pergunta – O sr. sempre foi crítico do nacionalismo como força política, avisando à esquerda que não deve pintá-lo de vermelho. Mas também se manifestou de modo contundente contra violações de soberania nacional cometidas em nome de intervenções humanitárias. Após a falência dos tipos de internacionalismo nascidos do movimento trabalhista, que tipos são desejáveis hoje?
Hobsbawm – Em primeiro lugar, o humanitarismo, o imperialismo dos direitos humanos, não tem muito a ver com internacionalismo. É indicativo ou de um imperialismo renascido, que encontra nele uma desculpa adequada para cometer violações de soberania de Estados –podem ser desculpas absolutamente sinceras–, ou então, o que é mais perigoso, é uma reafirmação da crença na superioridade permanente da região que dominou o planeta do século 16 até o final do século 20.
Afinal, os valores que o Ocidente procura impor são valores especificamente regionais, não necessariamente universais. Se fossem valores universais, teriam que ser reformulados em termos diferentes. Não creio que estejamos lidando aqui com algo que seja nacional ou internacional em si.
Mas o nacionalismo exerce um papel nisso, sim, porque a ordem nacional baseada em Estados-nações –o sistema westfaliano– tem sido no passado, para o bem ou para o mal, uma das melhores proteções contra a chegada de elementos externos a países. Não há dúvidas de que, uma vez que ela é abolida, o caminho fica aberto para guerras agressivas e expansionistas –de fato, é por essa razão que os EUA têm criticado a ordem westfaliana.
O internacionalismo, que é a alternativa ao nacionalismo, é uma coisa espinhosa. Ou é um slogan politicamente vazio, como foi, concretamente falando, no movimento trabalhista internacional –não queria dizer nada específico–, ou é uma maneira de assegurar uniformidade para organizações centralizadas e poderosas como a Igreja Católica ou a Internacional Comunista.
O internacionalismo significava que, como católico, você acreditava nos mesmos dogmas e participava das mesmas práticas, não importa quem você fosse ou onde vivesse. O mesmo acontecia, teoricamente, com os partidos comunistas. Em que medida isso realmente aconteceu, e em que estágio deixou de acontecer –mesmo dentro da Igreja Católica–, é outra questão. Não é realmente isso o que queríamos dizer com “internacionalismo”.
O Estado-nação foi e continua a ser o quadro em que são tomadas todas as decisões políticas, domésticas e externas. Até muito recentemente, as atividades dos partidos trabalhistas –na verdade, todas as atividades políticas– eram conduzidas quase inteiramente dentro do contexto de um Estado.
Mesmo dentro da UE [União Europeia], a política ainda é articulada em termos nacionais. Em outras palavras, não existe um poder de ação supranacional –apenas Estados separados formando uma coalizão.
É possível que o islã missionário e fundamentalista constitua uma exceção a essa regra, abarcando Estados, mas isso ainda não foi demonstrado concretamente. As tentativas anteriores de criação de Superestados pan-árabes, como a tentativa entre Egito e Síria, fracassaram precisamente devido à persistência das fronteiras existentes –antes coloniais– dos Estados.
Pergunta – Então o sr. vê obstáculos inerentes a quaisquer tentativas de extrapolar as fronteiras do Estado-nação?
Hobsbawm – Economicamente e na maioria dos outros aspectos –inclusive culturalmente, até certo ponto–, a revolução das comunicações criou um mundo genuinamente internacional, no qual há poderes de decisão que se transnacionalizam, atividades que são transnacionais e, é claro, movimentos de ideias, comunicações e pessoas que são mais facilmente transnacionais do que jamais antes.
Mesmo as culturas linguísticas hoje são suplementadas por expressões idiomáticas das comunicações internacionais. Na política, contudo, não se vê nenhum sinal de que isso esteja acontecendo, e é essa a contradição básica no momento.
Uma das razões pelas quais não vem acontecendo é que, no século 20, a política foi democratizada em grau muito grande –a massa da população comum se envolveu nela. Para essa massa, o Estado é essencial para suas operações cotidianas normais e para suas possibilidades de vida.
Tentativas de fragmentar o Estado internamente, pela descentralização, foram empreendidas, em sua maioria nos últimos 30 ou 40 anos, e algumas delas não deixaram de ter algum sucesso –na Alemanha, com certeza, a descentralização vem tendo alguma medida de sucesso, e na Itália a regionalização vem sendo benéfica.
Mas as tentativas de criar Estados supranacionais não têm funcionado. A UE é o exemplo mais óbvio disso. Ela foi prejudicada, até certo ponto, pelo fato de seus fundadores terem pensado precisamente em termos de um Superestado análogo a um Estado nacional, apenas maior –sendo que essa não era uma possibilidade, creio, e hoje com certeza não é. A UE é uma reação específica no interior da Europa.
Em um ou outro momento se viram sinais de um Estado supranacional no Oriente Médio e em outros lugares, mas a UE é o único que parece ter ido adiante. Não acredito, por exemplo, que exista muita chance de uma federação maior surgir na América do Sul. Pessoalmente, eu apostaria contra essa possibilidade.
Logo, o problema ainda não resolvido continua a ser a seguinte contradição: por um lado, há entidades e práticas transnacionais que estão em processo de esvaziar o Estado, talvez ao ponto de levá-lo ao colapso. Mas, se isso acontecer –coisa que não é uma perspectiva imediata, não em Estados desenvolvidos–, quem se encarregará da função redistributiva e de outras funções até agora empreendidas unicamente pelo Estado?
No momento, temos uma espécie de simbiose e conflito. Esse é um dos problemas básicos de qualquer tipo de política popular hoje.
Pergunta – O nacionalismo claramente foi uma das grandes forças motrizes da política no século 19 e boa parte do século 20. O que o sr. diz da situação atual?
Hobsbawm – Não há dúvida alguma de que o nacionalismo foi, em grande medida, parte do processo de formação dos Estados modernos, que exigiu uma forma de legitimação diferente da do Estado tradicional teocrático ou dinástico. A ideia original do nacionalismo era a criação de Estados maiores, e me parece que essa função unificadora e de expansão foi muito importante.
Um exemplo típico foi o da Revolução Francesa, na qual, em 1790, pessoas apareceram dizendo: “Não somos mais delfineses ou sulistas –somos todos franceses”.
Em uma etapa posterior, dos anos 1870 em diante, vemos movimentos de grupos no interior desses Estados impulsionando a criação de seus Estados independentes. Isso, é claro, gerou o momento wilsoniano de autodeterminação –se bem que, felizmente, em 1918-19, ele ainda fosse corrigido, até certo ponto, por algo que desde então desapareceu por completo, a saber, a proteção das minorias.
Era reconhecido, mesmo que não pelos próprios nacionalistas, que nenhum desses novos Estados-nações era, de fato, étnica ou linguisticamente homogêneo. Mas, depois da Segunda Guerra [1939-45], os pontos fracos das situações existentes foram enfrentados, não apenas pelos vermelhos, mas por todos, pela criação proposital e forçada da homogeneidade étnica. Isso provocou uma quantidade enorme de sofrimento e crueldade, e, no longo prazo, também não funcionou.
Apesar disso, até aquele período, o tipo separatista de nacionalismo operou razoavelmente bem. Ele foi reforçado após a Segunda Guerra Mundial pela descolonização, que, por sua própria natureza, havia criado mais Estados; e foi fortalecido ainda mais, no final do século, pela queda do império soviético [em 1991], que também criou novos Miniestados separados, incluindo muitos que, assim como aconteceu com as colônias, não tinham desejado de fato separar-se, mas aos quais a independência foi imposta pela força da história.
Não posso deixar de pensar que a função dos Estados separatistas pequenos, que se multiplicaram tremendamente desde 1945, mudou. Para começo de conversa, eles são reconhecidos como existentes. Antes da Segunda Guerra, os Miniestados –como Andorra, Luxemburgo e todos os outros– nem sequer eram vistos como parte do sistema internacional, exceto pelos colecionadores de selos.
A ideia de que tudo, até a Cidade do Vaticano, hoje é um Estado, potencialmente membro das Nações Unidas, é nova. Está muito claro, também, que, em termos de poder, esses Estados não são capazes de exercer o papel de Estados tradicionais –não possuem a capacidade de travar guerra contra outros Estados.
Tornaram-se, na melhor das hipóteses, paraísos fiscais ou bases subalternas úteis para as instâncias decisórias transnacionais. A Islândia é um bom exemplo disso, e a Escócia não fica muito atrás.
A função histórica de criar uma nação como Estado-nação deixou de ser a base do nacionalismo. Pode-se dizer que não é mais um slogan muito convincente. Pode ter sido eficaz, no passado, como meio de criar comunidades e organizá-las contra outras unidades políticas ou econômicas.
Hoje, porém, o fator xenofóbico do nacionalismo é cada vez mais importante. Quanto mais a política foi democratizada, maior foi o potencial para isso. As causas da xenofobia são muito maiores do que eram no passado. Trata-se de algo muito mais cultural que político –basta pensar na ascensão do nacionalismo inglês ou escocês nos últimos anos–, mas nem por isso menos perigoso.
Pergunta – O fascismo não incluía essas formas de xenofobia?
Hobsbawm – O fascismo ainda foi, até certo ponto, parte da investida para criar nações maiores. Não há dúvida de que o fascismo italiano foi um grande passo à frente na conversão de calabreses e úmbrios em italianos; e mesmo na Alemanha, foi apenas em 1934 que os alemães puderam ser definidos como alemães, e não alemães pelo fato de serem suábios, francos ou saxões.
É verdade que os fascismos alemão e europeu central e oriental foram acirradamente contrários a outsiders –judeus, em grande medida, mas não apenas eles. E, é claro, o fascismo forneceu uma garantia menor contra os instintos xenofóbicos.
Uma das vantagens enormes dos movimentos trabalhistas antigos era que eles forneciam essa garantia. Isso ficou muito claro na África do Sul: não fosse pelo compromisso das organizações de esquerda tradicionais com a igualdade e a não discriminação, teria sido muito mais difícil resistir à tentação de cometer atos de vingança contra os africânderes.
Pergunta – O sr. destacou as dinâmicas separatistas e xenofóbicas do nacionalismo. O sr. vê isso como algo que hoje atua nas margens da política mundial, e não no teatro principal dos acontecimentos?
Hobsbawm – Sim, acho que isso é provavelmente certo –embora existam regiões em que o nacionalismo causou danos enormes, como no sudeste da Europa. Ainda é verdade, é evidente, que o nacionalismo –ou o patriotismo, ou a identificação com um povo específico, que não precisa necessariamente ser definido por critérios étnicos– seja um enorme fator de legitimação dos governos.
Isso é claramente o caso na China. Um dos problemas da Índia, hoje, é que não existe nada exatamente assim por lá. Os EUA, obviamente, não podem ser definidos por uma unidade étnica, mas certamente têm sentimentos nacionalistas fortes.
Pergunta – Como o sr. prevê a dinâmica social da imigração contemporânea hoje, num momento em que tantos migrantes chegam anualmente à UE e aos EUA? O sr. prevê a emergência gradual de outro caldeirão cultural na Europa, não dessemelhante ao americano?
Hobsbawm – Mas o caldeirão cultural nos EUA deixou de sê-lo desde os anos 1960. Ademais, no final do século 20, a migração já era algo realmente muito diferente das migrações de períodos anteriores, em grande medida porque, ao emigrar, as pessoas já não rompem os vínculos com o passado no mesmo grau em que o faziam antes.
É possível continuar vivendo em dois, possivelmente até três, mundos ao mesmo tempo, e a identificar-se com dois ou três lugares distintos. É possível continuar a ser guatemalteco mesmo vivendo nos EUA. Também há situações como as da UE, nas quais, concretamente, a imigração não gera a possibilidade de assimilação. Um polonês que vem para o Reino Unido não é visto como nada além de um polonês que vem trabalhar no país.
Isso é claramente novo e muito diferente da experiência de pessoas da minha geração, por exemplo –a geração dos emigrados políticos, não que eu tenha sido um–, na qual nossa família era britânica, mas culturalmente nunca deixávamos de ser austríacos ou alemães; mas, apesar disso, acreditávamos realmente que deveríamos ser ingleses.
Mesmo quando um desses emigrados retornasse a seu próprio país, mais tarde, não era exatamente a mesma coisa –o centro de gravidade tinha se deslocado. Sempre há exceções: o poeta Erich Fried [1921-88], que viveu em Willesden (zona noroeste de Londres) por 50 anos, continuou, de fato, a viver na Alemanha.
Acredito realmente que é essencial conservar as regras básicas da assimilação –que os cidadãos de um país particular devem comportar-se de determinada maneira e gozar de determinados direitos, e que esses comportamentos e direitos devem defini-los, e que isso não deve ser enfraquecido por argumentos multiculturais.
A França havia, apesar de tudo, integrado mais ou menos tantos de seus imigrantes estrangeiros quanto os EUA, relativamente falando, e, mesmo assim, o relacionamento entre os locais e os ex-imigrantes é quase certamente melhor lá. Isso acontece porque os valores da República Francesa continuam a ser essencialmente igualitários e não fazem nenhuma concessão pública real.
Seja o que for que você faça no âmbito pessoal –era também esse o caso nos EUA no século 19–, publicamente esse é um país que fala francês. A dificuldade real não será tanto com os imigrantes quanto com os locais. É em lugares como Itália e Escandinávia, que não tinham tradições xenofóbicas prévias, que a nova imigração vem criando problemas sérios.
Pergunta – Hoje é amplamente disseminada a ideia de que a religião tenha retornado como força imensamente poderosa em um continente após o outro. O sr. vê isso como um fenômeno fundamental ou como fenômeno mais passageiro?
Hobsbawm – Está claro que a religião –entendida como a ritualização da vida, a crença em espíritos ou entidades não materiais que influenciariam a vida e, o que não é menos importante, como um elo comum entre comunidades– está tão amplamente presente ao longo da história que seria um equívoco enxergá-la como fenômeno superficial ou que esteja destinado a desaparecer, pelo menos entre os pobres e fracos, que provavelmente sentem mais necessidade de seu consolo e também de suas potenciais explicações do porquê de as coisas serem como são.
Existem sistemas de governo, como o chinês, que não possuem concretamente qualquer coisa que corresponda ao que nós consideraríamos ser religião. Eles demonstram que isso é possível, mas acho que um dos erros do movimento socialista e comunista tradicional foi optar pela extirpação violenta da religião em épocas em que poderia ter sido melhor não fazê-lo. Uma das grandes transformações interessantes advindas após a queda de Mussolini na Itália foi quando [Palmiro] Togliatti [secretário-geral do Partido Comunista Italiano] deixou de discriminar os católicos praticantes –e com razão.
De outro modo, ele não teria conseguido que 14% das donas de casa votassem nos comunistas na década de 1940. Isso mudou o caráter do Partido Comunista Italiano, que passou de partido leninista de vanguarda a partido classista de massas ou partido do povo.
Por outro lado, é verdade que a religião deixou de ser a linguagem universal do discurso público; e, nessa medida, a secularização vem sendo um fenômeno global, embora apenas em algumas partes do mundo ela tenha enfraquecido gravemente a religião organizada.
Para as pessoas que continuam a ser religiosas, o fato de hoje existirem duas linguagens do discurso religioso gera uma espécie de esquizofrenia, algo que pode ser visto com bastante frequência entre, por exemplo, os judeus fundamentalistas na Cisjordânia –eles acreditam em algo que é evidentemente tolice, mas trabalham como especialistas nisso.
O movimento islâmico atual é composto, em grande medida, por jovens tecnólogos e técnicos desse tipo. Com certeza, as práticas religiosas vão mudar muito substancialmente. Se isso vai realmente produzir uma secularização maior não está claro. Por exemplo, não sei até que ponto a grande mudança na religião católica no Ocidente –ou seja, a recusa das mulheres em pautar-se pelas normas sexuais– realmente levou as mulheres católicas a serem menos crentes.
O declínio das ideologias do iluminismo deixou um espaço político muito maior para a política religiosa e as versões religiosas de nacionalismo. Mas não creio que todas as religiões tenham vivido uma ascensão grande. Muitas delas estão claramente em declínio.
O catolicismo está lutando arduamente, mesmo na América Latina, contra a ascensão de seitas evangélicas protestantes, e tenho certeza de que está se mantendo na África apenas graças a concessões aos hábitos e costumes sociais que eu duvido que tivessem sido feitas no século 19.
As seitas evangélicas protestantes estão em ascensão, mas não está claro até que ponto são mais que uma minoria pequena entre os setores sociais com mobilidade ascendente, como era o caso antigamente com os não conformistas na Inglaterra. Tampouco está claro que o fundamentalismo judaico, que causa tanto mal em Israel, seja um fenômeno de massas.
A única exceção é o islã, que vem continuando a se expandir sem nenhuma atividade missionária efetiva nos últimos dois séculos. Dentro do islã, não está claro se tendências como o movimento militante atual pela restauração do califado representam mais que uma minoria ativista. Contudo, me parece que o islã possui grandes trunfos que favorecem sua expansão contínua –em grande medida, porque confere às pessoas pobres o sentimento de que valem tanto quanto todas as outras e que todos os muçulmanos são iguais.
Pergunta – Não se poderia dizer o mesmo do cristianismo?
Hobsbawm – Mas um cristão não crê que vale tanto quanto qualquer outro cristão. Duvido que os cristãos negros acreditem que valham tanto quanto os colonizadores cristãos, enquanto alguns muçulmanos negros acreditam nisso, sim. A estrutura do islã é mais igualitária, e o elemento militante é mais forte no islã.
Recordo-me de ter lido que os mercadores de escravos no Brasil deixaram de importar escravos muçulmanos porque eles insistiam em rebelar-se sempre. Onde estamos, esse apelo encerra perigos consideráveis –em certa medida, o islã deixa os pobres menos receptivos a outros apelos por igualdade.
Os progressistas no mundo muçulmano sabiam desde o início que não haveria maneira de afastar as massas do islã; mesmo na Turquia, tiveram que encontrar alguma forma de convivência –aliás, esse foi provavelmente o único lugar onde isso foi feito com êxito.
Pergunta – A ciência foi uma parte central da cultura da esquerda antes da Segunda Guerra, mas, ao longo das duas gerações seguintes, virtualmente desapareceu como elemento central do pensamento marxista ou socialista. O sr. acha que o destaque crescente das questões ambientais deverá reaproximar a ciência da política radical?
Hobsbawm – Tenho certeza de que os movimentos radicais vão se interessar pela ciência. O ambiente e outras preocupações geram razões fundamentadas para combater a fuga da ciência e da abordagem racional aos problemas, fuga que se tornou bastante ampla a partir dos anos 1970 e 80. Mas, com relação aos próprios cientistas, não creio que isso vá acontecer.
Diferentemente dos cientistas sociais, não há nada que leve os cientistas naturais a se aproximarem da política. Historicamente falando, eles, na maioria dos casos, têm sido apolíticos ou seguiram a política padrão de sua classe.
Existem exceções –entre os jovem na França do início do século 19, digamos, e, muito notavelmente, nas décadas de 1930 e 1940. Mas esses são casos especiais, que se devem ao reconhecimento por parte dos próprios cientistas de que seu trabalho estava se tornando cada vez mais essencial para a sociedade, mas que a sociedade não se dava conta disso.
O trabalho crucial sobre isso é “The Social Function of Science” [A Função Social da Ciência, MIT Press], de [J.D.] Bernal, que exerceu efeito enorme sobre outros cientistas. É claro que o ataque deliberado de Hitler contra tudo o que a ciência representava ajudou.
No século 20, as ciências físicas estiveram no centro do desenvolvimento, enquanto no século 21 está claro que são as ciências biológicas que estão. Pelo fato de estarem mais próximas da vida humana, pode haver um elemento de politização maior. Mas há um fato contrário, com certeza: cada vez mais, os cientistas têm sido integrados ao sistema do capitalismo, tanto como indivíduos quanto no interior de organizações científicas.
Quarenta anos atrás, teria sido impensável alguém falar em patentear um gene. Hoje, patenteia-se um gene na esperança de virar milionário, e esse fato afastou um grupo bastante grande de cientistas da política da esquerda. A única coisa que ainda poderá politizá-los é a luta contra governos ditatoriais ou autoritários que interferem em seu trabalho.
Um dos fenômenos mais interessantes na União Soviética foi que os cientistas lá foram forçados a se politizar, porque receberam o privilégio de um certo grau de direitos e liberdades –de tal maneira que pessoas que, de outro modo, não teriam passado de leais fabricantes de bombas de hidrogênio se tornaram líderes dissidentes.
Não é impossível que isso venha a ocorrer em outros países, embora não existam muitos no momento. É claro que o ambiente é uma questão que pode manter muitos cientistas mobilizados. Se houver um desenvolvimento maciço de campanhas em torno das mudanças climáticas, então é evidente que os especialistas se verão engajados, em grande medida combatendo os reacionários e os que nada sabem. Logo, nem tudo está perdido.
Pergunta – O que o atraiu originalmente para o tema das formas arcaicas de movimento social, em “Rebeldes Primitivos”, e até que ponto o sr. planejou isso de antemão?
Hobsbawm – Isso surgiu a partir de duas coisas. Quando percorri a Itália na década de 1950, eu não parava de topar com fenômenos aberrantes –representações partidárias no sul do país elegendo testemunhas de Jeová como secretários, e assim por diante; pessoas que refletiam sobre problemas modernos, mas não nos termos aos quais estávamos acostumados.
Em segundo lugar, especialmente após 1956, isso expressava uma insatisfação geral com a versão simplificada que tínhamos do desenvolvimento de movimentos populares da classe trabalhadora.
Em “Rebeldes Primitivos”, eu estava muito longe de ser crítico da leitura padrão– pelo contrário, eu observava que esses outros movimentos não chegariam a nenhum lugar a não ser que, mais cedo ou mais tarde, adotassem o vocabulário e as instituições modernas.
A despeito disso, ficou claro para mim que não bastava simplesmente ignorar esses outros fenômenos, dizer que sabíamos como todas essas coisas operam. Eu produzi uma série de ilustrações desse tipo, estudos de caso, e disse: “Estes não se encaixam”.
Isso me levou a pensar que, antes mesmo da invenção do vocabulário, dos métodos e das instituições políticas modernas, existiam maneiras como as pessoas praticavam política que englobavam ideias básicas sobre as relações sociais –entre elas, em grau não menor, as relações entre poderosos e fracos, governantes e governados– que possuíam uma certa lógica e se encaixavam.
Mas eu realmente não tive oportunidade de levar esse estudo adiante.
Pergunta – Em “Tempos Interessantes” [publicado em 2002], o sr. expressou reservas consideráveis em relação ao que eram na época modismos históricos recentes. O sr. acha que o cenário historiográfico continua relativamente inalterado?
Hobsbawm – Estou cada vez mais impressionado com a escala do desvio intelectual verificado na história e nas ciências sociais desde os anos 1970. Minha geração de historiadores, que de modo geral transformou o ensino da história, além de muitas outras coisas, procurou essencialmente estabelecer um vínculo permanente, uma fertilização mútua, entre a história e as ciências sociais; era um esforço que datava dos anos 1890.
A disciplina econômica seguiu uma trajetória diferente. Dávamos como certo que estávamos falando de algo real: de realidades objetivas, embora, desde Marx e a sociologia do conhecimento, soubéssemos que as pessoas não registram a verdade simplesmente como ela é.
Mas o que era realmente interessante eram as transformações sociais. A Grande Depressão foi instrumental nesse aspecto, porque reapresentou o papel exercido por grandes crises nas transformações históricas –a crise do século 14, a transição ao capitalismo. Não foram, na realidade, os marxistas que introduziram isso –foi Wilhelm Abel, na Alemanha, o primeiro a fazer a releitura dos fatos da Idade Média à luz da Grande Depressão dos anos 1930. Éramos um grupo que procurava resolver problemas, que se preocupava com as grandes questões. Havia outras coisas cuja importância diminuíamos: éramos tão contrários à história tradicionalista, à história dos governantes e figuras importantes, ou mesmo à história das ideias, que rejeitávamos isso tudo.
Em algum momento da década de 1970, ocorreu uma mudança acentuada. Em 1979-80 a [revista de história] “Past & Present” publicou uma troca de ideias entre Lawrence Stone e mim sobre o “revival da narrativa” –”o que está acontecendo com as grandes perguntas ‘por quê’?”. De lá para cá, as grandes perguntas transformativas vêm sendo esquecidas pelos historiadores, de maneira geral.
Ao mesmo tempo, ocorreu uma expansão enorme do âmbito da história –passou a ser possível escrever sobre qualquer coisa que se quisesse: objetos, sentimentos, práticas. Parte disso era interessante, mas também se viu um aumento enorme do que se poderia chamar de história de fanzine, na qual grupos escrevem com o objetivo de se sentirem mais positivos a seu próprio respeito.
O exemplo clássico disso é o dos indígenas americanos que se recusaram a acreditar que seus ancestrais tivessem migrado da Ásia, afirmando “sempre estivemos aqui”.
Boa parte desse desvio foi político, em algum sentido. Os historiadores oriundos de 1968 não se interessavam mais pelas grandes perguntas –pensavam que todas já tinham sido respondidas. Estavam muito mais interessados nos aspectos voluntários ou pessoais. O [periódico] “History Workshop” foi um desenvolvimento tardio desse tipo.
Não acho que os novos tipos de história tenham produzido quaisquer mudanças dramáticas. Na França, por exemplo, a história pós-Braudel não se compara à que foi feita pela geração dos anos 1950 e 1960. Pode haver trabalhos ocasionais muito bons, mas não é a mesma coisa. E estou inclinado a pensar que o mesmo pode ser dito do Reino Unido. Houve um elemento de antirracionalismo e de relativismo nessa reação dos anos 1970, que, ao todo, constatei ser hostil à história.
Por outro lado, houve alguns avanços positivos. O mais positivo destes foi a história cultural, que todos nós, inegavelmente, tínhamos deixado de lado. Não prestamos atenção suficiente à história do modo como ela de fato se apresenta a seus atores.
O livro “A Europa e os Povos Sem História” [Edusp], de Eric Wolf, é um exemplo de uma mudança positiva nesse respeito.
Também ocorreu uma ascensão enorme da história global. Entre não historiadores tem havido muito interesse pela história geral –ou seja, em como a raça humana começou. Graças a pesquisas de DNA, hoje sabemos muita coisa sobre a expansão de humanos através do planeta. Em outras palavras, dispomos de uma base genuína para uma história mundial.
Outro avanço positivo, em grande medida por parte dos americanos e em parte, também, dos historiadores pós-coloniais, tem sido a reabertura da questão da especificidade da civilização europeia ou atlântica e da ascensão do capitalismo — “The Great Divergence” [Princeton University Press], de [Kenneth] Pomeranz, e assim por diante. Isso me parece muito positivo, embora seja inegável que o capitalismo moderno surgiu em partes da Europa, e não na Índia ou China.
Pergunta – Se o sr. tivesse que escolher tópicos ou campos ainda inexplorados e que representam desafios importantes para historiadores futuros, quais seriam?
Hobsbawm – O grande problema é um problema muito geral. Segundo padrões paleontológicos, a espécie humana transformou sua existência com velocidade espantosa, mas o ritmo das transformações tem variado tremendamente. Isso claramente indica um controle crescente sobre a natureza, mas não devemos imaginar que sabemos para onde isso nos está conduzindo.
Os marxistas focaram, com razão, as transformações no modo de produção e em suas relações sociais como sendo geradoras de transformações históricas.
Contudo, se pensarmos em termos de como “os homens fazem sua própria história”, a grande questão é a seguinte: historicamente, comunidades e sistemas sociais buscaram a estabilização e a reprodução, criando mecanismos para prevenir-se contra saltos perturbadores no desconhecido. A resistência à imposição de transformações de fora para dentro ainda é um fator preponderante na política mundial, hoje. Como, então, humanos e sociedades estruturados para resistir a transformações dinâmicas se adaptam a um modo de produção cuja essência é o desenvolvimento dinâmico interminável e imprevisível?
Os historiadores marxistas poderiam beneficiar-se da pesquisa das operações dessa contradição fundamental entre os mecanismos que promovem transformações e aqueles que são voltados a opor resistência a elas.
Esta entrevista foi publicada originalmente na edição de janeiro/fevereiro da revista britânica “New Left Review”.
Tradução de Clara Allain.