O século que terminou recentemente pode ser caracterizado por um paradoxo espantoso. Por um lado, ele se apresenta como o próprio progresso, com um acúmulo de descobertas, de invenções e de... revoluções técnico-científicas, em todas as áreas de pesquisa, sem precedentes. Por outro lado, foi o século da barbárie mais completa, indo da morte em massa, provocada por guerras e por extermínios étnicos e políticos, a todas as formas de sofrimento também massificadas, quer se trate da generalização da tortura, das deportações de populações ou das epidemias de fome cuidadosamente orquestradas. (...)
Não é preciso recorrer às sutilezas da dialética para entender até que ponto são imbricados e interdependentes o progresso e a barbárie. (...) Conquista-se o espaço e destroem-se os solos mais férteis. (...) Os Direitos Humanos são assunto constante, mesmo enquanto milhões de crianças são condenadas ao trabalho forçado ou à guerra, eventualmente à prostituição e sempre a uma existência encurtada. Abrem-se restaurantes para cachorros e canais de televisão para gatos, enquanto populações inteiras estão desprovidas das condições mínimas de higiene. Tudo isso é perfeitamente conhecido, certamente, mas a verdade oculta por trás do paradoxo não: a humanidade enfim chegou a um estágio desenvolvimento que lhe permite acabar com a escassez a que esteve entregue durante milênios. O acúmulo de riquezas de todos os tipos, da produção de legumes frescos à saúde, à educação e ao conforto residencial, pode garantir a satisfação das necessidades mais elementares e criar, para todos os seres humanos, as condições necessárias a uma vida liberta da fome, das pandemias e das opressões. Em princípio.
[A escassez] não tem mais nenhuma relação com aquela que nossos antepassados longínquos conheceram enfrentando as chagas naturais e lutando pela sobrevivência. (...) As novas formas que ela assume, massivas, recorrentes e continuamente agravadas, são produtos diretos do progresso. Produtos, mas também condições (...) O desperdício desenfreado de água no Norte gera penúria também no Sul. (...) Se é verdade que ainda não existe cura para a AIDS, ao menos pode-se adiar a evolução da doença. Mas os monopólios farmacêuticos se recusam a reduzir seus preços em benefício dos africanos e colocam obstáculos à construção de laboratórios [um ataque aéreo dos Estados Unidos destruiu, sob a alegação de luta contra o terrorismo, o maior laboratório farmacêutico do continente africano]. (...) O par progresso-escassez tem um nome, produtivismo, que, além de matar o mar de Aral, está presente em nossas ruas, no gás carbônico de nossos carros. Assim, a possibilidade, em princípio, de acabar com a escassez não pode se realizar em tal contexto (...) Ouvem-se já os gritos dos especialistas: “Não é possível inverter o progresso!” Decerto não, ao menos esse progresso que tem como destino a lata de lixo. Mas é possível alimentar, tratar e educar todo mundo.
O século que se inicia parece não ficar atrás do precedente. Ao contrário, tudo indica que os danos continuam crescendo.
Fonte: LABICA, Georges. Democracia e Revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2009, pp. 14-17.
Nesse livro fica evidente a importância do comunismo e da democracia para Georges Labica. Para este autor - falecido recentemente - democracia e revolução estão estreitamente imbricadas, uma nutre a outra. Processos efetivamente revolucionários exacerbam a exigência e a possibilidade efetiva de democracia; a violência não deriva do impulso revolucionário libertador, mas da potência repressiva recente da ordem estabelecida. Labica não teme as palavras e, menos ainda, a luta - ainda que formidável - que as palavras precisam designar. Se revolução é democracia revolucionária, é preciso enfrentar os burocratismos e o peso crescente do executivo, despertar da anestesia submissa e resignada que dele derivam, livrar-se tanto do estalinismo quanto da dominação burguesa.Retomando a concepção lukacsiana de democratização, reitera que a revolução democrática permanece sendo anseio dos explorados. As impropriamente chamadas de "democracia-modelo" dos países centrais reduzem-se crescentemente a uma ditadura aberta do capital, para dentro e para fora de sua fronteiras. Marx, Lenin e Gramsci são trazidos ao texto para nos lembrar que não basta mudar o condutor da máquina capitalista, mas que é estritamente necessário acabar - quebrar, destruir - essa máquina.
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